Folhetim de Santa Ozita – A curandeira que desafiou o governo do Ceará. Capítulo 5/7. Por Angela Barros Leal

COMPARTILHE A NOTÍCIA

“A inútil proibição dos milagres”

A situação de misticismo, em seu todo, não surpreendia nesses tempos de desmedida omissão do poder público nos cuidados com a saúde dos mais pobres, a quem só restavam fé, esperança, caridade ou ilusão. A esse respeito propusera o jornal
A Ordem, de Natal: “Dissemine-se em todo o território nacional o maior número de ambulatórios médicos para o povo se tratar de suas enfermidades, e o curandeirismo desaparecerá do Brasil…”

O que havia de concreto contra a curandeira Ozita era fácil de identificar: em moeda sonante, o negócio dela não só se mostrava bastante rentável como conseguia fugir à arrecadação de taxas ou impostos, ao dízimo obrigatório que recai sobre o cidadão. Tome-se como referência o caso da fotografia dela em formato de cartão postal, comercializada a Cr$ 10,00, dez cruzeiros (para efeito comparativo, um exemplar do Correio do Ceará vendia-se a 80 centavos). O jornalista descobrira que mil fotos iguais haviam sido produzidas “na melhor casa fotográfica de Fortaleza” por Cr$ 2,50 cada (dois cruzeiros e cinquenta centavos), lucro suficiente para caracterizar exploração comercial. 

Acrescente-se às fotos o jorro incessante de moedas jorrando semanalmente para o cofre glutão da casa, à média de três pessoas por minuto, na contabilidade do Diário de Natal. Do centavo ao cruzeiro, da nota ao níquel, de grão em grão, deixando as mãos de milhares e milhares de pessoas, Ozita arrecadaria cerca de 16 mil cruzeiros mensais, nos cálculos do Correio Paulistano, mais um preocupado com as contas no ano no qual os cabeças-chata migravam para a morte quase certa na Amazônia impelidos pelo sonho dourado de ganhar mais que os 400 cruzeiros semanais que conseguiam, a duras penas, no Ceará.

Era só o que se discutia em Fortaleza, sobrepujando temas de maior gravidade, como a possível cassação de cargo do prefeito Acrísio Moreira da Rocha, como a campanha de combate à malária, como a tromba-d´água que destruíra o calçamento das ruas semanas antes, até mesmo como o casamento da atriz Rita Hayworth com o príncipe Ali Khan. Nas calçadas, nos bares, nas rodas formadas nos cafés, à sombra dos pés de fícus-benjamim, era Ozita – Santa Ozita, ou Santa Zita – o assunto principal.

Não frequentava a Igreja, um jornal reportava sobre ela; não considerava os Sacramentos, outro contribuía. Integrava a casta dos mágicos, adivinhos, dos áugures e, por que não, das bruxas e feiticeiras, devendo portanto ser banida do convívio de uma sociedade civilizada do século XX, ponderavam. 

Assim como o jornal pernambucano comparara o volume de pessoas aos tempos do Juazeiro de Padre Cícero, Luciano recorria a outro exemplo: “São João do Tauape não se transformará em um novo Canudos. Até quando o Ceará suportará o abuso?”, clamava ele em sua obstinada catilinária contra o que percebia ser pura exploração da miséria e da ignorância humanas.

A ida de Ozita à missa matinal na Igreja da Piedade (“a primeira…”, ironizava o jornalista) não fora suficiente para reduzir a pressão das autoridades. Secretaria de Polícia e Segurança Pública, Delegacia da Ordem Política e Social e Departamento Estadual da Saúde se uniram para dar solução ao problema, que alcançara os ouvidos do governador Faustino de Albuquerque.

A proibição oficial das curas de Ozita foi formalmente comunicada a ela no dia 25 de maio de 1949, uma quarta-feira, véspera do dia das consultas. Estava terminantemente proibida de prosseguir com seu “jogo comercial”. Ozita obedecera. As portas e janelas se fecharam à multidão, até que, às 9h da manhã do dia seguinte – a quinta-feira habitual dos atendimentos, uma ambulância da Base Aérea de Fortaleza estacionou diante da casa, sendo retirado do veículo um oficial sofrendo de paralisia. 

Levanta-te e anda!”, comandara Ozita. E ele levantou e andou, mal e mal, e as janelas e portas se abriram, e os gritos de “Milagre!” restabeleceram o império de Santa Ozita.

A ordem do Governador caíra por terra e os doentes voltaram a se enfileirar na rua. Embora Luciano Carneiro tivesse feito seu dever de casa, e ido até à Base Aérea para colher informações sobre o recente acontecido, encontrando o oficial outra vez preso ao leito, sofrendo com a mesmíssima gravidade de sempre, nada disso foi bastante para impedir que a empolgação da massa ganhasse novo fôlego. O problema se avolumava e um desfecho espetaculoso se formava no horizonte.

(Continua)

 

Angela Barros Leal é jornalista e escritora.

 

COMPARTILHE A NOTÍCIA

PUBLICIDADE

Confira Também

GM vai montar elétrico Spark no Ceará: importante fato novo industrial — e ativo político para Elmano

“Vamos pra cima”: Elmano endurece discurso em meio à onda de violência no Ceará

AtlasIntel: entre criminalidade e economia estagnada, Lula vê erosão no apoio e avanço de Tarcísio

Chiquinho Feitosa reúne Camilo, Evandro e Motta em articulação para 2026

A disputa no Ceará e os passageiros do carro dirigido por Ciro Gomes

Do cientista político Andrei Roman (AtlasIntel): Lula não é favorito em 2026 porque perdeu o ‘bônus Nordeste’

Vídeo de Ciro no centrão: discurso contra Lula e aceno à centro-direita e centro-esquerda

O roteiro de conversas e articulações que aponta Ciro candidato no Ceará

O que você precisa saber sobre a venda da Unifametro para o grupo que controla a Estácio

Disputa entre Ceará e Pernambuco derruba comando da Sudene e escancara guerra por trilhos e poder no Nordeste

Guararapes, Cocó e De Lourdes têm a maior renda média de Fortaleza. Genibaú, a menor

Moraes manda Bolsonaro para prisão domiciliar após vídeo em ato com bandeiras dos EUA

MAIS LIDAS DO DIA

Infância endividada; Por Gera Teixeira

Nordeste supera Região Sul e se firma como segundo polo de inovação do Brasil

Marquise reforça inovação como motor estratégico

Spark elétrico será montado no Ceará em regime SKD; Entenda o que significa

MP Eleitoral não acata pedido de prisão de Ciro, mas pede restrições cautelares

PDT fluminense sonha com Ciro para disputar Governo do Rio de Janeiro

Turismo brasileiro registra maior faturamento da série histórica e soma R$ 108 bilhões no semestre

Fux diverge de Moraes e Dino e vota por anular processo da trama golpista no STF

A última jogada do STF no tabuleiro do Golpe de 8 de janeiro – Moraes (rainha) já apontou o ex-rei (Bolsonaro) como chefe do golpe; Fux (bispo) tenta anular tudo