Você está com Alzheimer? – a voz masculina ressoou no telefone, ao meu ouvido. Eu sabia quem falava do outro lado, claro, porque o nome iluminava minha tela, mas mesmo assim emudeci. Sem um bom-dia-boa-tarde-boa-noite, sem um mísero quem-tá-falando, a voz repetiu, sílaba por sílaba: Você está com Alzheimer? – e eu, sem saber o que dizer, gaguejei qualquer coisa entre um o que, e um como assim.
Confesso que Alzheimer, doença batizada em homenagem ao médico que a identificou pela primeira vez, o alemão Alois Alzheimer, representa para mim a essência, a substância, o material bruto dos pesadelos. Meu pai foi vitimado por ela, e nós, os filhos, acompanhamos de perto a devastação que a doença causou na mente dele, uma transmutação completa da pessoa que ele era para a que passou a ser, seu cérebro brilhante sendo dominado aos poucos por placas esféricas invasoras, elementos alienígenas invadindo seu sistema neurológico, controlando seu pensamento, seu jeito de ser, seu comportamento.
Não, não estou com Alzheimer, consegui responder a meu interlocutor, após longos segundos elaborando tentativas de formular um retorno coerente, de enunciar uma frase defensiva. A pergunta, como ele explicou em seguida, se devia a uma resposta que eu não conseguira dar a ele em mensagem anterior, algo ligado à vida dele, vagamente relacionado comigo e, de todo, esquecível.
Naquele preciso momento, rodeada por tanta tecnologia de comunicação, lamentei a ausência de um antigo recurso analógico, da época dos telefones fixos, algo tão saudoso quanto o ruído das teclas das máquinas de escrever, ou as cadernetinhas de endereço que se acumulavam nas gavetas dos móveis. Entre os tantos aplicativos, programas, ícones, figurinhas, em todo o cardápio de opções digitais oferecidas, não havia uma só que me ajudasse a dar a melhor resposta àquela desvairada cobrança, e que não poderia ser outra que não o utilíssimo “bater o telefone”.
No universo digital, nada havia que relembrasse o estrondo de uma peça de escuta chocando-se contra o corpo estático do telefone fixo, o estouro procedente da força contida na dobra do cotovelo, na pressão do punho e da palma fechada da mão, agindo sobre a base de baquelite (ou qualquer que fosse o material).
Desliguei no silêncio que me permitia o aparelho celular, desenvolvido para pessoas civilizadas, que encerram uma ligação pressionando a pontinha de um dedo na tela, e que talvez nem tenham chegado a conhecer aquele extinto golpe final, evocador do despencar da guilhotina no pescoço das amizades e dos amores perdidos, o aplicativo denominado “bater o telefone”.
Não bati o telefone, pela impossibilidade física de assim fazer, porém não renunciei a meu direito de resposta. Depois de desligar, ruminei o diálogo, respirei fundo, enfeixei minha queixa em um pacote magoado e retornei a ligação, determinada a comunicar meu desgosto.
Mas era brincadeira! – ele me disse, com surpresa real ou fingida. Eu estava brincando! – garantiu, pondo na voz o máximo de sinceridade, para a qual fiz ouvidos surdos.
Em uma brincadeira os dois riem, precisei esclarecer. Na idade em que as doenças intensificam sua missão de rondar nossos órgãos, de farejar nossos pés como cães famintos, na idade em que o sobrevoo dos urubus no céu, acima dos nossos corpos em repouso, já parece prenunciar a imobilidade eterna, não se brinca com certos assuntos. Sendo um deles o Alzheimer.
Receio qualquer dia perder um par de óculos, e encontrá-lo depois dentro da geladeira, ou esquecer uma panela de água fervendo no fogão, ou deixar as chaves a noite inteira pelo lado de fora da porta. Meu alívio é sincero quando gente jovem relata falhas similares: então não é tão grave assim! E mal de muitos, na voz popular, consolo é.
O amigo não recebeu bem minha queixosa ligação de retorno. Paciência. Amizades possuem seu ecossistema próprio, aquecem e esfriam movidos pelos ventos das circunstâncias. Sei que, se algum dia o Alzheimer nos alcançar (o que espero, para o bem de todos, que jamais aconteça), essa pequena rusga será apenas mais uma a integrar o nosso amplo rol de esquecimentos.