Hoje acordei cheia de piedade pelos tradutores. “Traduttore traditori”, pontificam os italianos, os primeiros a traduzir, em duas palavras simples, o sofrido dilema de verter um texto para outro idioma.
Cabe aos tradutores o trabalho de desfazer, para um dado grupo linguístico, as mensagens cifradas emitidas por um grupo diferente, integrantes todos da nossa grandiosa Torre de Babel, na qual (para meu espanto, porém de acordo com a Wikipedia), mais de 7 mil idiomas continuam vivos e respirando.
As palavras pesam, sabemos nós, que delas nos valemos, e que ao uso delas estamos condenados. As palavras têm seu valor singular quando sozinhas, em caixinhas organizadas, cada uma delas ocupando lugar dentro da sua categoria gramatical, nomeando e definindo algo que existe no mundo à nossa volta.
Claro que existem as palavras ambíguas, polissêmicas, capazes de designar mais de um objeto, de um qualificativo ou de uma ação, existindo também as palavras opacas, aquelas que exigem consultas a fontes de sapiência para revelar seus segredos. Mas, ainda assim, cada palavra, por si só, emite sua luz própria, possui seu conceito estabelecido.
A dificuldade para a tradução surge quando as palavras se unem umas às outras. Quando se dão as mãos, incorporando vírgulas e outros sinais gráficos de pontuação, ampliando assim seu sentido. Quando se fortalecem e se compõem em frases, capazes de voltear pela sala ou escritório, e de se enroscar no pescoço de quem tenta traduzi-las.
Como a entidade viva que passa a se constituir, o conjunto de palavras formadoras da frase nasce dotado de uma alma. É aí que se arma o laço, e se lança a rede que condena à crítica os tradutores.
Ontem mesmo li trechos curiosos de um livro chamado Balaio de gatos, assinado pelo dentista e escritor Helder Ferreira de Moura (a quem não conheço), que vi como exemplo do pesadelo que deve ser a tarefa de traduzir. Assim como as obras de Leonardo Mota (Adagiário nordestino) e Câmara Cascudo (Locuções tradicionais do Brasil), o livro traz expressões bem nossas, formadas todas elas por palavras usuais, conhecidas.
Entretanto, o espírito das frases, aquilo que constitui sua alma, passa a quilômetros de distância do que seria o sentido literal, previsível. Pelo que percebo, são livros produzidos exclusivamente para o público brasileiro – ainda assim com ressalvas regionais – sem maiores condições de exportação.
O título Balaio de gatos é o primeiro desafio. Como traduzir, para qualquer que seja o idioma, algo que na aparência seria uma simples cesta onde repousam felinos? Como traduzir, com fidelidade, “dar uma de João sem braço”? E “hora da onça beber água”? Ou ainda “não ter nada a ver com o peixe”?
Podem buscar em seus vocabulários expressões equivalente, é claro, porém dificilmente alcançarão o colorido das frases originais. Daí que a minha constatação sobre os desditosos tradutores.
No caso presente, lamento de coração o destino dos dedicados brazilianists (apenas para citar o mais conhecido grupo de interessados na nossa língua, na nossa história e nos nossos costumes), empenhados em decifrar o que o autor teria desejado dizer com aquela expressão que se referia a “rodar a baiana”, ou à fatídica “lei do Chico de Brito”, ou ainda ao multifacetado “pular a cerca”…
Se essas frases e expressões devem espantar os bem-intencionados intérpretes, por outro lado são elas que nos unem como filhos de uma mesma Pátria, como guardiões de uma memória oral mais ampla, como partícipes de uma mesma cultura coletiva, que vem no nosso sangue – sabe-se lá! – desde “o tempo do ronca”.
Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus Poder