Em um país onde o cuidado ainda tem rosto e gênero, cresce a urgência de refletir sobre a saúde mental das mulheres que sustentam silenciosamente a chamada “sociedade do cuidado”.
No Brasil e em grande parte do mundo, o cuidado ainda tem rosto e gênero: o das mulheres. Seja no âmbito doméstico, no trabalho remunerado ou nas relações familiares, são elas que, majoritariamente, assumem a responsabilidade de organizar a casa, acompanhar os filhos, administrar a rotina escolar e, muitas vezes, prestar apoio a familiares idosos, doentes ou pessoas com deficiência.
Essa sobreposição de papéis revela um dado alarmante: segundo o IBGE, as mulheres dedicam, em média, o dobro do tempo ao cuidado não remunerado em comparação aos homens. Muitas enfrentam jornadas duplas ou triplas, conciliando emprego, maternidade, tarefas domésticas e o cuidado de terceiros, o que repercute diretamente na saúde mental. Não à toa, o aumento dos afastamentos do trabalho por transtornos psicológicos cresceu mais de 130% no país nos últimos dois anos, segundo dados do INSS.
O desafio é ainda maior para as mães atípicas, que dedicam grande parte de sua vida ao cuidado integral de filhos com descapacidades ou necessidades especiais. Muitas não conseguem se manter no mercado de trabalho, não por falta de qualificação, mas pela ausência de políticas públicas efetivas, como escolas inclusivas em tempo integral, serviços de cuidadores ou redes comunitárias estruturadas. A consequência é dupla: além da sobrecarga emocional e física, soma-se a vulnerabilidade econômica.
Situação semelhante ocorre quando uma filha adulta precisa cuidar dos pais idosos. O peso recai quase sempre sobre as mulheres da família, em uma tarefa invisibilizada e não remunerada, que impacta a saúde mental e limita oportunidades de crescimento profissional. Estudos mostram que mulheres cuidadoras apresentam taxas mais elevadas de ansiedade e depressão do que homens na mesma função.
Ao compararmos os gêneros, a desigualdade se evidencia: homens cuidadores ainda são exceção e, quando o fazem, costumam ser socialmente valorizados por “ajudar”, enquanto a dedicação feminina é vista como obrigação natural. Esse desequilíbrio reforça a necessidade de pensar em quem cuida de quem cuida.
O Setembro Amarelo, mês que alude a prevenção ao suicídio, lança luz sobre um ponto crucial: a saúde mental das mulheres cuidadoras não pode continuar invisível. A resposta não pode ser individualizada. É urgente discutir políticas públicas que garantam suporte (creches acessíveis e inclusivas, serviços de atenção a idosos, programas de apoio psicológico e financeiro), mas também uma mudança cultural profunda, que responsabilize igualmente homens e mulheres no exercício do cuidado.
Afinal, cuidar é essencial. Mas não pode ser uma prisão para algumas, enquanto é escolha opcional para outros. É necessário ter em mente que o direito a cuidar, receber cuidado e exercer o autocuidado é reconhecido como essencial, instituído na política nacional de cuidados no Brasil pela Lei 15.069/2025 em atendimento a um esforço internacional a respeito do tema.
Reconhecer, valorizar e dividir esse papel é condição fundamental para uma sociedade mais justa, equitativa e saudável, por meio da promoção da corresponsabilização social e entre homens e mulheres pela provisão de cuidados, consideradas as múltiplas desigualdades.
Érica Martins é Advogada, Mestranda em Direito Constitucional pela Unifor, Especialista em Direito e Processo do Trabalho e Direito Previdenciário pelo Centro Universitário Estácio do Ceará, Professora Universitária, Conselheira Estadual da OAB-CE e Diretora Adjunta de Políticas Educacionais para mulheres da Escola Superior da Advocacia no Ceará (ESA-CE)