“Minha alma canta”; Por João de Paula

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— A la izquierda, el célebre estadio Maracanã!

Foi o que disse o piloto chileno pelo serviço de som daquele avião saído de Santiago com destino a Bruxelas. Nossos sentimentos eram conflitantes. De um lado, alegria de mesmo do alto revermos o Rio de Janeiro, última cidade do Brasil em que tínhamos vivido e, pelo outro, tristeza pois não podíamos sequer fazer uma escala ali, devido ao risco de sermos presos. Embora em contexto diferente, Tom Jobim, no Samba do Avião, expressou bem essas emoções: “Minha alma canta, vejo o Rio de Janeiro, estou morrendo de saudade”.

Nossas almas cantavam quando o avião ia se aproximando do Rio, e a saudade ia aumentando à medida que ele se distanciava. O contentamento por vermos um pedaço do nosso querido Brasil diminuía a cada milha que nos afastava dele, enquanto ia crescendo nossa sensação de falta das pessoas, lugares e coisas que ficavam para trás.

Aquele voo, que era parte de uma viagem cujo destino final era a Alemanha, país que nos acolheu como perseguidos por duas ditaduras militares, coroava quatro meses de lutas por um novo abrigo, transcorridos desde nossa entrada em Padre Hurtado, lugar de onde partíramos poucas horas antes.

O refúgio em Santiago

Lembrando disso, ressalta-se, em primeiro lugar, o alívio que sentimos ao chegarmos àquele refúgio em Santiago, depois dos sobressaltos que passáramos desde o dia do golpe de Pinochet. Esta sensação foi logo acrescida de uma grande alegria ao vermos ali a Ângela, Daniela e Paulo Lincoln. Não lembro se quem ganhou a corrida para abraçá-los foi a Tereza, o Pedro, a Ruth ou eu. Todos ansiávamos por saber o que acontecera com cada um. Foram muitas histórias de apreensões, temores, desconfortos e sustos. Porém, o que mais importava era que, naquele momento, estávamos a salvo e juntos.

A administração do refúgio ficou a cargo do Comité Nacional de Ayuda a los Refugiados, organizado pela Igreja Católica, que aderira à iniciativa de obter da Junta Militar imunidade para ele, liderada pelo ACNUR, órgão da ONU. Mesmo estando sob proteção destas duas respeitáveis instituições, no início havia muitas dúvidas sobre o compromisso da Junta Militar em respeitar a inviolabilidade daquele local e os direitos humanos básicos das pessoas que estavam ali refugiadas, o que gerava naturais preocupações, principalmente nas famílias com filhos pequenos.

Vida em Padre Hurtado

Não demorou para que o número de abrigados naquele ex-seminário chegasse perto de quatrocentos, tornando muito complexa sua gestão. Uma equipe de funcionários competentes e atenciosos foi engajada pelo Comité, mas eram tantas as tarefas a serem realizadas que nós refugiados nos voluntariamos para cooperar na execução delas.

Alguns ofereceram-se para ajudar na preparação dos alimentos e nos serviços de refeitório, outros nas atividades de limpeza e higiene. Como havia poucos médicos entre nós, foi feita uma divisão de responsabilidades, da qual participei, mesmo com as limitações de um quintanista de medicina. Coube a mim, sob supervisão de um médico, o atendimento das crianças. A Ruth organizou um programa de atividades pedagógicas com crianças e adolescentes. Assim, cada um procurava contribuir para o coletivo conforme suas possibilidades e aptidões.

Iniciou-se uma série de reuniões dos refugiados adultos para pactuação de normas de convivência no que seria o nosso lar por algum tempo e para avaliação da evolução dos acontecimentos para a conquista de novos asilos.

Durante uma daquelas reuniões alguém gritou “começou a invasão”, ao ver em um dos janelões do auditório uma baioneta, depois um cano de fuzil e em seguida um capacete de soldado. Antes que ocorresse uma reação de pânico, apareceu o rosto sorridente do Lucho, um uruguaio do movimento guerrilheiro Tupamaro. Se é difícil entender como uma pessoa possa ter tido a ideia de fazer uma brincadeira daquele tipo, também não é fácil explicar que um soldado possa ter emprestado sua arma a quem lhe competia vigiar. O Lucho foi criticado severamente por sua atitude temerária, mas o que teria acontecido com aquele soldado se o seu comandante tivesse tido conhecimento do seu comportamento?

Tenho pensado muito sobre a formação militar que produz soldados como aquele chileno e como o paranaense que me prendeu no Congresso Regional da UNE, em Curitiba, achando que estava em um exercício e que eu era um oficial da PM do Paraná.

Estrutura do abrigo

A vida em Padre Hurtado foi sendo organizada com base em uma estrutura muito simples, que tinha sido concebida em conformidade com os princípios jesuíticos dos que criaram aquele ex-seminário católico. Mobiliados rusticamente, os alojamentos eram pequenos, mas confortáveis.

A maioria localizava-se no edifício central e algumas dezenas deles distribuíam-se em um longo pavilhão de dois andares, encrustado em um pomar de macieiras e pessegueiros. Fomos acomodados neste lugar apelidado de Pajarera (aviário), assim como grande parte dos brasileiros, que constituíam a maior parcela dos que estavam refugiados ali.

Além de brasileiros, havia outros latino-americanos fugidos de ditaduras em seus países, como argentinos, uruguaios, bolivianos, peruanos e salvadorenhos. A Argentina encontrava-se em uma situação instável pois ainda não se completara a transição entre a ditadura do general Lanusse e a posse de um novo governo peronista, razão pela qual alguns argentinos não se sentiam seguros para regressar ao seu país.

No entanto, havia um grupinho de três portenhos, cujo motivo para não voltar aparentava não ser de natureza política. Pelo comportamento deles, tinha-se a impressão de que seus problemas estavam mais relacionados ao Código Penal do que à doutrina da Segurança Nacional, recomendada a vários países pelos EUA dentro de sua estratégia na Guerra Fria.

Destoava também do perfil tradicional de refugiado político um haitiano que dizia ter sido perseguido em seu país por ter trabalhado para a CIA, o que já o colocava como um ponto fora da curva naquele meio onde as pessoas costumavam ser perseguidas por ela, ao invés de colaborar com ela. Mas, diferentemente do trio argentino, que era arredio, o caribenho era espontâneo, comunicativo e sociável, cultivando sempre um bom relacionamento com todos nós.

Convívio e cultura

Apesar de todas as dificuldades e atribulações, o período passado em Padre Hurtado proporcionou a nós brasileiros a oportunidade de conviver com muitos latino-americanos de outros países e de aprender um pouco de sua cultura.

Separados pelo idioma, distanciados geograficamente (principalmente os nortistas, nordestinos e sudestinos) e com formação histórica distinta, tínhamos muito a trocar com eles. Com esse objetivo eram organizados alguns eventos, nos quais cada país apresentava elementos de suas culturas, tais como culinária, música, danças típicas, folguedos etc. Estes encontros enriqueceram mutuamente seus participantes e contribuíram muito para a integração das pessoas.

O tempo ia passando e a expectativa de um novo asilo sendo postergada aumentava as tensões. Decidimos entrar em greve de fome com o objetivo de chamarmos mais a atenção da opinião pública mundial para convencer países a nos receberem. Graças a reportagens de correspondentes estrangeiros, esta ação teve boa repercussão internacional, sobretudo na Europa.

Negociações e saídas

Pouco depois, o integrante da Junta Militar e comandante da Força Aérea, general Gustavo Leigh, veio falar conosco em um evento organizado pelo Comité e o ACNUR. Ouvimos sua promessa de que a inviolabilidade do refúgio continuaria a ser respeitada e que não seriam colocadas dificuldades à nossa saída do Chile, mas, ao retirar-se dali, nenhum refugiado se dispôs a apertar sua mão.

Outra novidade foi o começo de visitas de representantes de diversos países dispostos a nos acolher. Exposições foram feitas sobre as condições oferecidas e exigidas para a concessão de exílio político por diplomatas do Canadá, Alemanha, Bélgica, França, Dinamarca, Suécia e Reino Unido.

Entrevistas individuais eram marcadas com os interessados, e cada país prometia dar resposta positiva ou negativa. Muitos brasileiros decepcionaram-se com a atitude dos chamados países socialistas de só acolherem pessoas indicadas pelo PCB.

Ruth e eu nos candidatamos para o Reino Unido, Alemanha e Bélgica. Fomos aceitos pelos dois primeiros países e, até partirmos para a Alemanha, não tínhamos recebido resposta da Bélgica. Na nossa decisão pesaram dois fatos: recomendações positivas do Paulo Lincoln, que tinha nos antecedido, e a garantia dada pelos alemães de que poderíamos continuar nossos estudos — coisa que os ingleses se negaram a dar.

A partida progressiva de pessoas aceitas por alguns países foi distensionando o clima no refúgio e colocando novas necessidades, como, por exemplo, a obtenção de documentos necessários para comprovar atividades de trabalho ou de estudo realizadas no Chile.

O ACNUR obteve da Junta Militar a concessão de salvo-condutos para que refugiados pudessem fazer esses trâmites. Eu os utilizei algumas vezes para requerer comprovação dos meus estudos e para tentar obter medicamentos para as crianças que eu atendia.

Episódios marcantes

Em uma destas saídas aconteceu um fato surpreendente. Quando voltava de um escritório onde fora buscar medicamentos, ao passarmos em frente ao Haiti, cafeteria muito popular em Santiago, o motorista do ACNUR me convidou para tomarmos um café, assegurando que faria tudo para que eu só precisasse abrir a boca para ingeri-lo.

Quando tinha tomado uns três goles, ouvi pessoas falando português no mesmo balcão onde eu estava, a cerca de um metro e meio de distância. Estranhando aquilo, olhei cuidadosamente de lado e tomei um susto: uma das três pessoas que conversavam era o Sérgio Fleury. Não tive dúvida sobre aquele rosto frequentemente estampado nos jornais brasileiros como herói da luta para eliminar “terroristas”.

Entre os presos políticos, sua fama de torturador igualava-se à do coronel Brilhante Ustra. Sabíamos que agentes da repressão tinham vindo do Brasil para ajudar os militares chilenos na identificação e interrogatório de brasileiros, mas não imaginávamos que, para o campo de concentração em que se convertera o Estádio Nacional, tinham sido enviados integrantes do time principal de torturadores.

Não consegui tomar o resto do café. Virei-me e saí discretamente, indo aguardar o motorista no carro.

Tragédias e alegrias

Quando as condições de vida no refúgio começaram a melhorar — pela saída em segurança de várias pessoas e pela perspectiva concreta de acolhimento das demais por diversos países, com possibilidades de prática de exercícios físicos e de esportes como vôlei e futebol — ocorreu uma tragédia que nos abalou fortemente: o falecimento do Dudu, uma criança de 4 anos de idade, muito querida por todos nós, que se afogou em uma piscina que tinha estado desativada por muito tempo.

Não pôde ser esclarecido como ele conseguiu ir até lá sem ser percebido pelos familiares, funcionários e demais pessoas do refúgio. A perda do Dudu causou enorme impacto emocional em sua família, afetando profundamente a todos que a cercavam.

Objetivando diminuir o efeito pesaroso da morte do Dudu sobre as crianças e pré-adolescentes, o Comité e o ACNUR conseguiram um ônibus e salvo-condutos para levar trinta deles a alguns pontos recreativos de Santiago. Acompanhados de um casal de funcionários do ACNUR e por mim, que lhes prestava assistência médica, eles tiveram um dia de muitas brincadeiras e descontração. Retornaram daquele passeio relaxados e sorridentes; para eles, o simples deslocamento pela cidade diminuíra a monotonia de várias semanas de clausura.

Certo dia, assustou-nos um fato inusitado para brasileiros: de repente, comecei a ter uma sensação estranha no contato com o solo, como se ele se movesse para um lado e eu para o outro; em seguida os móveis do quarto começaram a balançar, alguns se chocando com as paredes e provocando ruídos. Era o meu primeiro terremoto. Ruth e eu descemos correndo as escadas da Pajarera e, quando chegamos ao andar térreo, já encontramos muita gente aglomerada, conversando sobre o que acontecera.

Para os de países andinos aquilo tinha sido uma banalidade, “um temblor chico” que seguramente não passaria de quatro graus na escala Richter. E foi isso o que confirmaram as rádios pouco depois. Ou seja, fora apavorante só para a turma que não era do ramo, como nós brazucas.

Acontecimento inesquecível foi a chegada a Padre Hurtado da Izabela, filha da Tereza e do Pedro, que tinha sido deixada sob os cuidados de seus avós maternos quando os pais escaparam do Brasil em condições precaríssimas.

A alegria do casal, que contou com a ajuda da Cruz Vermelha em seus esforços para trazer a filha amada para junto de si, era tão grande que contagiava a todos que o cercavam.

Outro momento de grande alegria foi a cerimônia coletiva, muito simples, do casamento do Pedro e Tereza, Lucila e Ednaldo, Ruth e eu, celebrada em 16 de dezembro, pelo Padre Roque Lauschner, jesuíta brasileiro que dava assistência espiritual aos refugiados de Padre Hurtado.

Um dia, Tereza, Pedro, Ruth e eu fomos avisados que uma visita nos aguardava na portaria. Chegando lá, tivemos uma surpresa agradabilíssima: era a Dona Esther, nossa querida vizinha da rua El Líbano. Depois de nos abraçar efusivamente, ela nos estendeu um maço de cédulas, dizendo que era o apurado da venda das coisas que abandonáramos ao sairmos abruptamente da nossa casa.

Tivemos dificuldade de encarar aquela cena como real. Não tínhamos conseguido nos despedir dela, nada lhe pedíramos e considerávamos aquelas coisas como perdidas definitivamente. Então, como explicar tamanha demonstração de honradez, solidariedade e coragem?

Guardamos uma gratidão imorredoura para com esta mulher admirável; Pedro, Ruth e eu até hoje mantemos contato com ela e com sua filha Claudita.

Epílogo

A chegada na Alemanha, os sentimentos e impressões iniciais e os primeiros desafios que enfrentamos são assuntos que requerem uma outra historieta.

De Maranguape,
João de Paula

 

João de Paula Monteiro Ferreira, 79 anos, ex-presidente do DCE da UFC, ex-diretor da UNE, médico especialista em psicoterapia e psicologia organizacional, formado pela Medizinische Fakultæt der Universitæt zu Kœln, República Federal da Alemanha.

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