Se viva fosse, minha mãe, Lindalva, completaria 100 anos, neste domingo, dia 1º de junho. Eu, com meus 60, sigo me descobrindo a partir dela — das partes que plantou em mim e que, muitas vezes, só agora percebo. Freud talvez explique essa presença silenciosa e persistente, esse legado que não se esgota com a ausência física. Mas há algo que vai além da psicanálise: é o amor que molda, a saudade que permanece, a memória que se renova.
Minha mãe nasceu e cresceu na zona rural de Tamboril, Ceará, mais precisamente no Sítio do Meio, uma fazenda cravada entre lajedos e serrotes. Tinha uma relação umbilical com aquele território, mas não se iludam: detestava a calmaria dos “Matos”, como ela mesma dizia. Sua alma ansiava por movimento, inquietude, ambientes urbanos onde pudesse expandir seus gestos e pensamentos.
Gostava de escrever seus poemas e versos naifs, singelos e cheios de uma pureza forte, própria de quem viu o mundo de dentro do sertão, mas nunca se conformou com os limites que ele impunha. Adorava as cores — fazia delas armas para afirmar o feminino, para demarcar sua presença num sertão feito, historicamente, para os homens. Talvez, sem saber, tenha sido uma das primeiras feministas que conheci: afirmando-se silenciosamente, com dignidade e beleza, no espaço onde o mundo masculino era a norma.
Minha mãe foi professora, e talvez eu tenha herdado dela esse gosto pela palavra, pela escrita e pelo gesto de compartilhar conhecimento. Quantas vezes a vi ensinando crianças e adultos a escrever, pegando na mão de cada um, com paciência, para que aprendessem a desenhar as letras, a construir nomes, a reivindicar para si a autoria sobre a própria história. Mas seu maior orgulho não estava apenas na sala de aula — era no ofício de corte e costura, onde podia moldar tecidos, a fazer roupas e a conquistar autonomia.
Ela mesma costurava as nossas primeiras roupas. Guardo a imagem vívida dela pedalando a velha máquina Singer, enquanto cantarolava músicas de Dalva de Oliveira e Nelson Gonçalves. Cenas que hoje, na memória, parecem carregar toda a cor da sua personalidade.
Linda e Alva — como meu pai às vezes a chamava —, minha mãe era vaidosa. Estava sempre maquiada, bem vestida, com os cabelos alinhados, desafiando o estereótipo da mulher sertaneja resignada à aspereza do cotidiano. Ela fazia do cuidado com a aparência um ato de afirmação, de resistência e de beleza, no reino das necessidades básicas mal atendidas do Nordeste brasileiro.
Aos 11 anos, saí de casa para estudar em Fortaleza. Foi uma verdadeira violência, um desterro precoce. Ainda ouço o eco daquele silêncio que ficou quando parti. Mas sempre que vinha um portador, ela me enviava uma carta escrita de próprio punho, junto com uma lata de doce de leite que ela mesma fazia. Era sua maneira de me manter perto, de costurar nossa relação com afeto, mesmo à distância. Como me arrependo de não ter guardado essas cartas, essas relíquias do cuidado materno.
Ainda assim, agradeço essa saída precoce. Aquele afastamento de meu pai e de minha mãe me fez, paradoxalmente, encontrar quem sou em outros
territórios. Foi o que me naturalizou como uma espécie de cidadão do mundo, alguém que já morou em Salvador, Rio Branco e São Paulo, e que, hoje, se reconhece como naquela música: “um estrangeiro, passageiro de algum trem”.
A saudade que sentimos de nossas mães é uma presença constante, uma espécie de semente que germina em diferentes momentos da vida. Não importa quantos anos tenhamos, nem quantos lugares tenhamos visitado: sempre haverá nelas um porto seguro, uma origem, uma marca indelével.
Hoje, ao lembrar de minha mãe Lindalva e do centenário que ela completaria, reconheço o quanto ela segue viva em mim. Nas palavras que escrevo, na maneira como olho o mundo, no carinho que aprendi a ter pelos detalhes, no amor pela educação, artes, cultura e pela costura das relações humanas.
A saudade de nossas mães nunca passa. Ela se transforma, amadurece, mas continua sendo a expressão mais pura do amor que nos moldou e que, de alguma forma, nos eterniza.
Paulo Mota é mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, especialista em Comunicação Estratégica, Projetos Culturais e Gestão Pública. Ex-Folha de Sã o Paulo, El País e Banco do Nordeste. Atualmente é gerente de Comunicação e Marketing da Companhia de Gás do Ceará