Clima democrático, horizonte carregado; Por João de Paula

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Cigarillos, solamente el miércoles.

Pode ser este mesmo, foi o que falei para aquela pessoa que me atendeu na lojinha que tinha uma placa anunciando a venda de cigarillos. A cara de espanto que o vendedor fez ao ouvir o que lhe disse pareceu-me ter sido causada por sua dificuldade em entender português. No entanto, o problema de idioma que estava ocorrendo naquele segundo dia da minha chegada ao Chile não era dele, era meu. Eu não sabia que miércoles era quarta-feira em espanhol, nem que, devido a uma crise de abastecimento, cigarro era um dos muitos produtos que só estavam à venda em alguns dias da semana, dependendo do comerciante conseguir adquiri-los.

Mas não quero agora estender-me sobre meus problemas com o idioma de Cervantes, nem falar sobre a grave crise econômica e política que assolava o Chile. Neste momento, minha necessidade maior é a de registrar a alegria de termos sido despertados da primeira dormida na acolhedora casa da Ângela e do Paulo Lincoln por risadas da Daniela, uma chileninha-brasileirinha de pouco mais de um ano de idade. Para a Ruth e para mim, membros de famílias numerosas, aquele episódio evocou reminiscências profundas, pois as manifestações de vitalidade e afetividade de crianças eram uma constante em nossas casas.

Outro momento de grande emoção foi o dos telefonemas que demos para nossas respectivas famílias. Nas duas pontas das linhas telefônicas, eram muito fortes os sentimentos produzidos por vozes que haviam passado mais de quatro anos sem serem ouvidas.

Vindos do Brasil num dos momentos mais repressivos da ditadura militar, a nossa sensação mais presente nos primeiros dias da nossa estadia no Chile era de embevecimento com a liberdade. E a mais concreta, a mais perceptível de imediato, era a liberdade de imprensa: podermos ler nos jornais tudo que ocorria no país, ouvir o mesmo nas rádios e assistir às televisões mostrando tudo o que quisessem, independentemente de posições políticas ou ideológicas, era algo que nos tocava muito.

A comparação era inevitável, já que nossa referência dos últimos tempos no Brasil era de uma comunicação em que se percebia nos mínimos detalhes a presença da censura — com jornais praticando a autocensura ou substituindo notícias por tarjas pretas e versículos da Bíblia (estes muito usados no Estadão), proibições de canções em rádios, interdição de peças teatrais, hiatos de informações nas TVs.

A liberdade era profusamente exibida também nas ruas de Santiago, onde se manifestavam pessoas contra e a favor do governo; estava expressa nos cartazes sobre os mais diferentes temas, afixados em toda parte; e era esgrimida nas discussões entre pessoas nas praças, nos parques, nos bares. Enfim, o ambiente era de uma democracia plena.

O clima democrático percebido no início nos fez muito bem. Produziu em nós uma sensação de paz, inclusive física. Desapareceram temores e tensões. Andávamos pelas ruas sem a preocupação de olhar para trás. Revigoraram-se nossas energias para reconstruir a vida nas novas condições.

Naquele novo país havia todo um universo a ser compreendido. Para começar, a primeira questão era a da nossa subsistência, considerando o sonho de conclusão dos nossos estudos universitários, interrompidos no Brasil tão próximos do encerramento pelo Decreto-Lei 477 da ditadura militar. Os primeiros dias foram de conversas com a Ângela e o Paulo Lincoln, nossos generosos anfitriões, para nos inteirarmos da realidade chilena. A primeira aula prática dos dois foi nos levar para algumas manifestações em defesa do governo da Unidad Popular em frente ao Palácio de La Moneda (sede da Presidência), que eram invariavelmente respondidas por outras, contra o governo, nos dias seguintes.

Para a conclusão dos nossos estudos, recebemos das nossas famílias o mais completo apoio — inclusive financeiro —, assegurando a manutenção nos primeiros meses. Nossos familiares nos ajudaram muito também na difícil tarefa de tentar obter em Fortaleza a documentação que possibilitasse a transferência de nossas faculdades. Os meus foram conseguidos pela Mirian, minha irmã mais velha, com muito esforço e por meio de bons contatos construídos na Faculdade de Medicina. Infelizmente os documentos da Ruth não puderam ser obtidos, o que a levou a decidir-se por fazer cursos de curta duração na Universidad Católica.

De posse de meu histórico escolar, e com a ajuda valiosa do Paulo Lincoln na tradução para o espanhol, dei entrada em um pedido de matrícula na Faculdad de Medicina de la Universidad de Chile e consegui autorização para frequentar informalmente as aulas das quatro disciplinas que faltavam para a conclusão do meu curso, enquanto corriam os trâmites da minha solicitação, que foi deferida em 14.06.1973. Era notável a solicitude das autoridades chilenas no trato e na acolhida das nossas demandas como refugiados.

Em paralelo aos meus estudos, comecei a trabalhar como voluntário na favela El Manzanar, situada na região sudeste da periferia de Santiago, atendendo em um Posto de Saúde do Programa de Atenção Médica Externa. Neste programa governamental, sob supervisão de um médico, estudantes dos últimos anos de medicina integravam uma equipe de saúde de atenção primária, que fazia triagens e encaminhamentos. Esse Posto era subordinado ao Hospital Dr. Sotero Del Rio, unidade regional que atendia os pacientes encaminhados e onde os estudantes de medicina cumpriam uma escala de plantões.

Em março chegaram ao Chile a Tereza e o Pedro Albuquerque, companheiro da Ruth e meu na direção do Diretório Central dos Estudantes da UFC e nas muitas lutas contra a ditadura militar. Com isso, quase completou-se a Diretoria Executiva do DCE de 1967/68, da qual o Paulo Lincoln também era membro. Um mês depois, Tereza, Pedro, Ruth e eu fomos morar em uma casa que alugamos na esquina das avenidas El Líbano e Quilín, não muito longe de onde moravam a Ângela e o Paulo Lincoln, que durante dois meses nos proporcionaram uma hospitalidade recheada de atenção e afeto.

Nossas vidas reestruturavam-se progressivamente, mas tínhamos duas preocupações: Ruth e eu ainda não havíamos encontrado uma forma que nos satisfizesse de contribuir na divulgação dos crimes que a ditadura militar cometia no Brasil, e começávamos a perceber no horizonte político sinais de um golpe iminente — percepção que não era novidade para a maioria dos refugiados que tinham vivenciado a derrubada de regimes democráticos em seus países.

A rigor, a preparação de um golpe no Chile começou quando Salvador Allende foi eleito presidente, havendo a primeira tentativa por ocasião de sua posse. O chefe do estado-maior das Forças Armadas, general René Schneider, foi assassinado por opor-se a este complô. As tramas golpistas intensificaram-se à medida que as dificuldades econômicas foram surgindo e a polarização política entre esquerda e direita radicalizando-se.

Em 1973, o Chile sofria com desabastecimento e hiperinflação. Greves de caminhoneiros paralisavam o transporte de mercadorias. Empresários e investidores retiravam recursos do país. Os EUA aplicaram boicotes financeiros e comerciais. As reservas internacionais estavam esgotadas. Eram grandes as dificuldades para importar bens essenciais. Os golpistas tinham conseguido tornar o cotidiano social insuportável para a maioria da população. O desfecho do golpe era uma questão de tempo. De pouco tempo.

O sangrento golpe do general Pinochet, a eliminação dos que lhe resistiram, a perseguição aos estrangeiros e o refúgio sob proteção da ONU, no entanto, são assuntos para outra historieta.

João de Paula Monteiro Ferreira, 79 anos, ex-presidente do DCE da UFC, ex-diretor da UNE, médico especialista em psicoterapia e psicologia organizacional, formado pela Medizinische Fakultæt der Universitæt zu Kœln, República Federal da Alemanha.

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