Fui para Cuba e o Panamá em uma temporada de férias embalado pelo som da turma do Buena Vista Social Club, Pablo Milanés e da velha nova trova cubana. Voltei, no entanto, fã de um porto-riquenho chamado Bad Bunny e do reggaeton — esse ritmo que nasceu nas ruas e praias do Caribe, ganhou o mundo e recentemente viralizou em um vídeo com Mick Jagger, aos 82 anos, supostamente dançando com Lucas, seu filho brasileiro, em uma balada de verão em Portugal.
Quem me apresentou Benito Antonio Martínez Ocasio, o Bad Bunny, foi minha enteada Gabi, entre goles de daiquiris e mojitos em Habana Vieja — ou seria Trinidad? Enquanto eu e Verônica insistíamos nos clássicos cubanos, ela nos sugeria reggaeton.
Certa vez, me mostrou no Instagram a sacada de Bad Bunny em fazer uma residência de shows em Porto Rico para atrair milhares de fãs à sua terra natal. Desde então, me familiarizei com seu som e, de volta ao Brasil, não paro de descobrir músicas suas.
O reggaeton nasceu nos anos 1990, a partir da fusão de sons jamaicanos (como o dancehall e o reggae) com o hip-hop norte-americano e ritmos caribenhos e afro-latinos. Ganhou força no Panamá e se consolidou em Porto Rico, onde artistas locais criaram uma identidade própria.
Sua base rítmica é marcada pelo “dembow”, uma batida repetitiva e contagiante que convida ao corpo e à dança. Letras de festa, sensualidade, crítica social e orgulho cultural se misturam, criando uma linguagem que fala diretamente às periferias urbanas, mas que hoje conquistou pistas e arenas em todo o mundo. Medi sua força nos dias que passei em Havana. Como fiquei hospedado em Habana Vieja, centro histórico da capital cubana, sentia o calor das ruas do meu quarto no hotel. De dia, escutava os sons do papagaio de uma vizinha e o alarido de um povo que não cansava de ouvir reggaeton e jogar conversa fora nas esquinas do cenário do filme Buena Vista Social Club, clássico do alemão Wim Wenders.
Na madrugada de uma segunda-feira, fui despertado algumas vezes pelas danças de pequenos grupos de jovens que seguiam em festa ao som do reggaeton em caixinhas de som ambulantes, num “verdadeiro comunismo” — expressão emprestada de um conterrâneo sertanejo para definir a cena de um grupo de mulheres que precisaram levantar a roupa para atravessar um rio transbordado em Tamboril, no sertão do Ceará. Se Paris é uma festa, Havana é uma farra, deveria ter dito Ernest Hemingway, que morou neste mesmo cenário.
Os números do sucesso de Bad Bunny são impressionantes. Ele foi o artista mais ouvido do mundo no Spotify por três anos consecutivos (2020 a 2022). Seu álbum Un Verano Sin Ti superou 10 bilhões de streams em um único ano, e sua turnê World’s Hottest Tour arrecadou mais de US$ 435 milhões, a maior já feita por um latino. Agora, Benito leva adiante uma residência de 30 shows em San Juan, movimentando US$ 200 milhões e atraindo 600 mil visitantes. Nove apresentações são exclusivas para moradores da ilha — um gesto de devolução de prestígio e pertencimento, mais do que de faturamento.
Essa estratégia de valorizar a terra natal me faz lembrar os grandes artistas baianos. Caetano Veloso e Gilberto Gil, ao lado de João Gilberto e Dorival Caymmi, cantaram as paisagens da Bahia e projetaram o estado para o mundo. Do mar de Itapuã às ruas do Pelourinho, da lagoa de Abaeté às noites tropicais, a Bahia foi transformada em cenário universal através de suas canções. O que Benito faz com Porto Rico guarda esse mesmo gesto: transformar o local em linguagem global sem que ele perca sua alma. E mais: fazer de sua arte um instrumento para fortalecer a economia local.
Seus números só se sustentam porque suas letras dialogam com as dores e desejos de uma geração e de seu povo.
“Me Fui de Vacaciones” é um convite para deixarmos de lado os compromissos com o trabalho e estudo, desconectarmos e passearmos pela sua amada terra natal. “Porto Rico é lindo de se ver até no Google Maps”, sentencia.
Em “Yo Perreo Sola (eu danço sozinha)”, Bad Bunny dá voz à autonomia feminina em um gênero marcado pelo machismo, celebrando a independência de mulheres que dançam sozinhas sem precisar da validação dos machos e reforçando o conceito de que “não é não”.
“Estamos Bien” e “El Apagon” são irônicas declarações de amor a Porto Rico, que demonstrou resiliência após o furacão Maria e aos inúmeros problemas de infraestrutura decorrentes, misturando festa e denúncia num protesto contra a precariedade da energia na ilha.
Benito dança, mas também pensa, protesta e emociona.
Esse hibridismo me lembra Bob Marley. Se o jamaicano projetou sua pequena ilha no mapa global com mensagens de espiritualidade e resistência, Bad Bunny faz de Porto Rico um centro de gravidade cultural através do reggaeton e da estética urbana. Ambos provaram que a periferia pode se tornar centro sem precisar se descaracterizar.
Sua atitude também me remete ao “efeito Joelma”. Quando a vocalista da banda Calypso citou pupunha e açaí em uma música, ajudou a aumentar a demanda desses produtos no Pará. Benito faz o mesmo em escala caribenha: transforma shows em motor de turismo, move milhões de dólares e transforma Porto Rico em destino desejado para fãs do mundo inteiro.
No fundo, Bad Bunny não faz mais do que repetir Fernando Pessoa, que escreveu:
“O Tejo é mais belo que o rio da minha aldeia, mas o Tejo não é mais belo que o rio da minha aldeia porque o Tejo não é o rio da minha aldeia.”
Benito reafirma sua aldeia caribenha como centro do mundo.
Cearenses também ousaram usar suas aldeias para falar do universal: Fausto Nilo disse que muitos de seus sucessos nasceram inspirados nas músicas que ouvia nas radiadoras de Quixeramobim, onde recentemente fez show na reinauguração de uma estação de trem lotada e transformada em espaço cultural. E Ednardo, em Terral, brinca com a palavra aldeia — “aldeia, aldeota, estou batendo na porta para lhe aperrear” — mostrando que é justamente na força do lugar de origem que se encontra a chave para dialogar com o mundo inteiro.
