Atribuo a culpa à minha amiga Fátima. Veio dela a informação de que ousara ler o clássico Guerra e Paz, publicado por Liev (ou Leo, ou Leon) Tolstói no estilo de folhetins para jornal, os capítulos reunidos depois em quatro livros somando mais de 1.200 páginas, envolvendo cerca de 500 personagens – uma missão quase impossível que ela conseguira vencer a duras penas.
Confesso que ouvi com certa inveja, embora não o suficiente para me encorajar a tanto. Mas decidi me aproximar aos poucos do desafio começando por outro russo, Fiódor Dostoiévski, disposta a enfrentar as exatas 589 páginas de seu Crime e Castigo.
Menciono o número de páginas por duplo motivo. O primeiro, o óbvio: estamos hoje tão ocupados, de cabeça baixa sobre nossas telas de mão, que não tem sobrado tempo para incursões literárias mais demandantes. Nossa capacidade de atenção reduziu-se a uns poucos minutos – e olhe lá se não estamos na casa dos segundos. Qualquer concentração acima disso parece uma eternidade à nossa mente, em estado de perpétua distração, ocupada no meio de uma artilharia pesada de informações.
O segundo motivo pelo qual mencionei o número de páginas dos livros é fruto da curiosidade em saber como conseguiam eles, os escritores russos, escrever tanto, em condições que imagino tão adversas, em Moscou e em São Petersburgo. Como encontravam tempo e inspiração para produzir em tamanho volume, enquanto ocupavam lugar em um tempo e um espaço tão adversos?
Enfim. Se foram difíceis de produzir, não são igualmente fáceis de ler. São livros que merecem ser escalados por alpinistas calejados, cientes dos obstáculos de toda ordem que podem surgir ao longo do percurso (e que começam com os nomes e apelidos dos personagens), testando a própria força de vontade e rezando pela ausência de compromissos mais urgentes, até a chegada ao aguardado ponto final.
Crime e castigo, ao qual dediquei algumas semanas da minha vida, é um daqueles livros que muitos conhecem e poucos leram. O enredo pode ser resumido, usando os superpoderes da Inteligência Artificial, a um único parágrafo: “Crime e Castigo, de Dostoiévski narra a história de Raskólnikov, um ex-estudante pobre que, impulsionado por sua teoria de que homens ‘extraordinários’ podem infringir a lei, assassina uma agiota.” Spoiler sesquicentenário: o castigo serão oito anos de prisão. Na Sibéria.
Página após página, é um assombro como esse fio de enredo pode ser tecido para sustentar questionamentos sobre moral, sobre filosofias de vida, para mergulhar na angústia mais profunda, para descrever hábitos e costumes da esfera privada, para a criação de situações de dor e de sofrimento e de frieza no coração obscuro da Rússia.
Como somos diferentes, dos personagens desenhados por volta de 1865, e como somos tão semelhantes.
Enquanto o jovem Roman Românovitch Raskólnikov delira e se tortura em febre, questionando suas razões para ter cometido o duplo crime, desprezando em seguida o fruto do latrocínio, vemos a copeira da pensão em que ele mora soprando a sopa para esfriar, como nós sopramos. Acompanhamos a recomendação da jovem Sonia Marmiéladov para que ele se dirija a uma encruzilhada, as quatro ruas abertas aos quatro pontos cardeais, e de lá peça perdão a Deus pelo que fez.
Reúnem-se os moradores em grupos, como nos reunimos; criam dramas tremendos onde o trivial caberia; julgam uns aos outros sem conhecimento pleno do caleidoscópio de fatos prévios, como nós também julgamos; fumam cigarros, cachimbos, charutos; apanham chuvaradas desprotegidos; jogam bilhar; mascam cravos-da-índia; estendem roupas para secar; tem sonhos e pesadelos.
Não mudamos tanto assim, de meados do século XIX para cá, de outro país com tão diversa cultura para o nosso, que até agradeço por um trecho especial do livro, onde pelo menos se percebe o acontecimento de alguma evolução. Precisando Raskólnikof de um trabalho, é informado por um amigo sobre a possibilidade de participar da edição de um opúsculo com o seguinte título: “Pertencem às mulheres à espécie humana?”
Termino a leitura com o sentimento de dever cumprido. Quem sabe, daqui a alguns meses me venha a coragem de conversar com a minha amiga Fátima, e pedir emprestado a ela seus quatro volumes de Guerra e Paz.
Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus Poder desde 2021. Sócia efetiva do Instituto do Ceará.