Há algo de profundamente errado quando um país descobre que CPFs de crianças serviram de porta para dívidas. Crianças não assinam contratos, não planejam consignados, não compreendem taxas e prazos. O que elas compreendem é confiança. Quando a confiança falha, falimos antes mesmo do balanço. Falimos como sociedade que deveria proteger o que é frágil e acabou entregando a inocência a cadastros que dizem sim sem perguntar quem está do outro lado da tela.
O argumento técnico tenta explicar a fraude como ruído de sistemas, falha de validação, integração mal feita entre bases de dados. A linguagem da infância não cabe em relatórios. O que cabe é a pergunta que não nos deixa dormir: quem lucra quando o erro tem CNPJ e a vítima tem caderno de caligrafia. Números não sangram, mas famílias sangram quando descobrem que o futuro do filho foi penhorado por uma engrenagem que confunde agilidade com irresponsabilidade.
A infância endividada é a metáfora perfeita da nossa inversão moral. Em vez de proteger o mais frágil, terceirizamos o zelo para algoritmos. Em vez de responsabilizar pessoas, terceirizamos a culpa para telas e fluxos que autorizam o impossível. É a mentira vestida de procedimento, é a negligência fantasiada de eficiência. A tecnologia que deveria ampliar direitos transformou a exceção em rotina e chamou isso de modernização.
Basta imaginar a cena para entender o abismo. Um adulto consulta um sistema e autoriza um crédito no nome de alguém que ainda aprende a escrever o próprio nome. Não é inovação, é abandono. Não é progresso, é precarização digital do cuidado. Não há contrato possível quando a parte supostamente contratante sequer sabe o que é juros ou parcela. Há apenas um carimbo que decide e uma família que paga o preço.
Nada disso acontece no vazio. O país ainda tenta entender a fraude bilionária dos descontos indevidos em contracheques de aposentados. Gente com remédios contados, com geladeira quase vazia, foi surpreendida por débitos misteriosos que corroem o benefício de quem mais precisa. A barbárie não está no tamanho do valor subtraído. Está no alvo escolhido. O golpe mira quem tem menos força para reagir e escolhe a noite longa da burocracia para agir sem testemunhas.
No caso das crianças, a perplexidade se soma ao espanto político. Em declarações públicas recentes, o ministro de um governo que prometeu cuidar dos vulneráveis afirmou não saber do uso de CPFs de menores para consignados. A alegação de desconhecimento não conforta. Revela a distância entre gabinete e realidade, entre discurso e prática, entre a promessa de proteção e a vida concreta de quem foi lesado.
As instituições precisam agir com pressa e profundidade. É necessário rastrear cada operação, reconstituir cadeias de autorização, abrir o código das decisões automatizadas, responsabilizar quem assinou e quem silenciou. É necessário criar barreiras que não sejam meros pop ups, mas provas de vida e de maturidade, checagens presenciais, auditorias independentes, trilhas públicas de alteração. É necessário devolver ao espaço público a certeza de que a infância é inviolável também nos bancos de dados.
A educação financeira é importante, mas não é desculpa. Ela deve começar por quem libera o crédito e por quem desenha os sistemas. A ética não pode ser um anexo do contrato. Precisa estar na primeira linha. Se um sistema não sabe diferenciar um adulto de uma criança, ele não é inteligente. É perigoso. Se um processo permite que aposentados adoeçam de susto diante do contracheque, esse processo não é administrativo. É desumano.
A infância não deve nada ao mundo. É o mundo que deve à infância o direito de crescer sem dívidas e sem cicatrizes. Um país decente não aceita o barulho de caixas registradoras quando o que deveria se ouvir é o riso de uma criança. Que a indignação não se perca no noticiário. Que se transforme em reparação, em proteção efetiva e em vigilância cidadã. Porque o futuro tem nome, sobrenome e CPF. E não pode começar devendo.
