Quando a zebra dá certo: do Crato dos anos 70 à Nova York de 2025; Por Paulo Mota

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Na política, há momentos em que as derrotas preparam vitórias que o tempo ainda não sabe reconhecer. Foi assim no Crato, em 1976, quando um grupo de sonhadores lançou a campanha “Vai dar zebra!”, desafiando o poder estabelecido da ditadura militar com humor, coragem e uma pitada da irreverência típica do povo cearense.

Era o velho MDB, o partido das utopias possíveis, liderado por figuras como Jósio Araripe, Eudoro Santana e Raimundo Bezerra, que encabeçou a chapa — homens e mulheres que acreditavam que o voto podia ser um ato de liberdade e de luta, mesmo sob a sombra dos generais.

Na última quinta-feira, na Biblioteca Pública Estadual, tive o orgulho de apresentar os livros Eneida – Uma Trabalhadora na Educação e Jósio – A Palavra sem Medo, de Flamínio Araripe. Obras que recuperam essa memória com delicadeza e rigor. Ao lê-las, percebi que não se tratam apenas de biografias, mas de retratos de um tempo em que a coragem e a ternura se encontravam na vida de um casal que amava o conhecimento, o povo e a liberdade. São também um passeio pela história do Crato e do Ceará.

De um lado, Eneida Figueiredo Araripe — a elegância do feminino no sertão — rompeu barreiras sociais e culturais numa época em que poucas mulheres ousavam ocupar espaços públicos. Professora, intelectual, leitora voraz, Eneida exerceu o feminino como força ética e estética: firme, mas suave; discreta, mas transformadora.

Do outro, Jósio, advogado, cronista e político, fez da palavra sua arma mais potente contra o medo e o autoritarismo. No rádio, com o programa A Palavra Sem Medo, em que Antônio Vicelmo lia suas crônicas, e nas páginas dos jornais, Jósio ensinou que o verbo também pode ser resistência.

Foi com esse mesmo espírito de ousadia que o grupo do Crato lançou a chapa “Vai dar zebra” em 1976. Eles não venceram nas urnas — foram apenas 1.918 votos —, mas plantaram sementes democráticas que floresceriam décadas depois. Raimundo e Eudoro se elegeram deputados anos mais tarde. Raimundo chegou a ser prefeito do Crato na década de 90 e seu filho foi vice-prefeito depois. E entre os jovens que cresciam inspirados por aquela geração estava Camilo Santana, filho de Eudoro e Ermengarda, que viria a ser governador do Ceará e hoje é ministro da Educação. A zebra, afinal, demorou — mas deu certo.

Essa história, contada por Flamínio Araripe, ecoa de forma surpreendente na semana da vitória do recém-eleito prefeito de Nova York, Zohran Mamdani, que também desafiou o sistema político tradicional e venceu como uma zebra: improvável, subestimado, movido por ideais. Filho de imigrantes, socialista e militante das causas populares, Mamdani representa, em outro tempo e lugar, o mesmo gesto simbólico — a crença de que a política pode ser feita com propósito, coragem e sensibilidade.

O que une o Crato de 1976 à Nova York de 2025 é a persistência dos visionários — pessoas que sonham antes da hora e pagam o preço da ousadia. Eudoro e Raimundo foram presos e torturados no início da década de 1970. Jósio era estigmatizado como subversivo. As zebras da história — sejam elas derrotadas ou vitoriosas — lembram que as ideias mais fortes nem sempre vencem nas urnas, mas sobrevivem nos valores que ajudam a transformar o mundo.

Porque, no fundo, a verdadeira vitória da política está menos na contagem dos votos e mais na capacidade de plantar o futuro. E como provaram Eneida, Jósio, Raimundo Bezerra, Eudoro, Ermengarda, Camilo — e agora Mamdani — às vezes, o improvável é apenas o que ainda não aconteceu.

Paulo Mota é mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, especialista em Comunicação Estratégica, Projetos Culturais e Gestão Pública. Ex-Folha de Sã o Paulo, El País e Banco do Nordeste. Atualmente é gerente de Comunicação e Marketing da Companhia de Gás do Ceará.

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