Meias verdades. Por Angela Barros Leal

COMPARTILHE A NOTÍCIA

Em um belo dia de sol, do alto da escada corporativa me veio uma ordem conjugada no futuro do presente: Escrevereis crônicas.

Ora vejam só. Escrever crônicas. Tão tranquila navegava eu nos mares turbulentos do século XIX, onde no início da pandemia buscara o conforto de saber que tudo passa, e agora, ao ouvir soprarem os ventos das mudanças, vinha-me aquele poderoso comando: Escrevereis crônicas.

Quando portas e janelas das casas se fecharam, quando as ruas ficaram desertas, quando as varandas se transformaram em altares ecoando orações e músicas sacras, quando netos foram apartados dos avós e amigos dos amigos, quando locais de venda se viram forçados a cessar atividades, quando bares e restaurantes deitaram suas cadeiras qual cabeças cansadas sobre mesas vazias, quando os hotéis e resorts quedaram ermos – quando tudo isso se deu estabeleci meu refúgio no século XIX.

Sujeitos ao isolamento compulsório, muitos descobriram dons na pintura, na culinária, no aprendizado de idiomas, em viagens virtuais. A mim serviu o mergulho na leitura dos antigos periódicos digitalizados pela Hemeroteca da Biblioteca Nacional, preciosa cápsula do tempo na qual embarquei com o alívio de quem retorna ao lar. Assim fui ganhando familiaridade com vultos sobre os quais apenas ouvira falar; escutando, nas vozes da época, fatos sobre os quais detinha vaga noção; confirmando que paixões políticas são tão passageiras como qualquer outra paixão (quem se importa hoje com restauradores, caranguejos, liberais, marretas, conservadores miúdos, graúdos…); e fui confirmando que, para o bem ou para o mal, um dia tudo passa.

E de repente cai sobre mim o comando para escrever crônicas, emergir do passado e encarar o presente. Não foi bem assim, irá contestar o Editor deste espaço, pouco à vontade ao ser tão peremptoriamente acusado, tentando reduzir seu papel nessa mudança capaz de trazer uma reviravolta à minha zona de conforto. Você está livre para escrever o que quiser, é o que me dirá. Fique à vontade.

A crônica se auto define: tem sua raiz em chronos, tempo. Trata do cotidiano, dos fatos do dia a dia, da observação do entorno, traduzidos em ótica pessoal. Sua mais perfeita explicação, no entanto, não é encontrada nos dicionários e sim nos textos de autores como Rubem Braga e Paulo Mendes Campos, escritores de pena bailarina, capazes de tecer com fio de ouro qualquer retalho descosido posto diante deles.

A possibilidade de assumir uma crônica me assusta. Impossível chegar perto sequer da lama que mancha a bainha do manto de deuses como Rubem Braga, que escreveu, sobre um simples prato mineiro: “O lombo era essencial, e sua essência era sublime. A faca penetrava nele tão docemente como a alma de uma virgem pura entra no Céu. A polpa se abria levemente enfibrada, muito branquinha, desse branco leitoso e doce que têm certas nuvens às quatro e meia da tarde na Primavera”.

Ou como seu conterrâneo, Paulo Mendes Campos, tratando da nova Capital Federal: “Brasília comove. A mim comove. Sei que uma praça e uma casa são belas quando me comovem. Mas não conheci pelo mundo qualquer outra cidade que me comovesse em sua integridade, só pela compressão estética de suas linhas, independente de sua história ou de minhas motivações subjetivas”.

Impossível, imploro ao Editor.

Isso também porque a crônica resvala na identidade de quem a escreve, traça a tangente mágica de uma bala perdida, porém capaz de atingir pensamentos e corações. A crônica ronda a intimidade do autor por apresentar o mundo através de olhos identificados, identificáveis. Rasga uma janela para dentro, alicerçada que é nos sentimentos, e escancara a alma e o espírito de quem a assina.

Ou não.

A crônica não é jurada sobre a Bíblia. Não é autenticada com selos e carimbos em nenhum cartório. Não há nada que garanta sua veracidade. Carece de testemunhas. É como o gato de Schrëdinger, decantado pelos físicos teóricos, que pode estar vivo ou morto em sua caixa, o que se saberá apenas ao abri-la. A crônica deixa brechas para a inverdade entrar, entrelaça o real com a fantasia, age como Tim Maia, descrevendo a si mesmo como alguém que não tinha vício algum – exceto mentir um pouquinho…

Aceito o desafio do Editor. Abandono a segurança do extinto século XIX e me exponho ao XXI. Mas não posso deixar de apresentar uma advertência, usando as palavras do escritor argentino-canadense Alberto Menguel: “Confio mais em minha imaginação que em minha memória”…

Angela Barros Leal é jornalista e escritora

COMPARTILHE A NOTÍCIA

PUBLICIDADE

Confira Também

GM vai montar elétrico Spark no Ceará: importante fato novo industrial — e ativo político para Elmano

“Vamos pra cima”: Elmano endurece discurso em meio à onda de violência no Ceará

AtlasIntel: entre criminalidade e economia estagnada, Lula vê erosão no apoio e avanço de Tarcísio

Chiquinho Feitosa reúne Camilo, Evandro e Motta em articulação para 2026

A disputa no Ceará e os passageiros do carro dirigido por Ciro Gomes

Do cientista político Andrei Roman (AtlasIntel): Lula não é favorito em 2026 porque perdeu o ‘bônus Nordeste’

Vídeo de Ciro no centrão: discurso contra Lula e aceno à centro-direita e centro-esquerda

O roteiro de conversas e articulações que aponta Ciro candidato no Ceará

O que você precisa saber sobre a venda da Unifametro para o grupo que controla a Estácio

Disputa entre Ceará e Pernambuco derruba comando da Sudene e escancara guerra por trilhos e poder no Nordeste

Guararapes, Cocó e De Lourdes têm a maior renda média de Fortaleza. Genibaú, a menor

Moraes manda Bolsonaro para prisão domiciliar após vídeo em ato com bandeiras dos EUA

MAIS LIDAS DO DIA

Advocacia: a voz que não se deve calar. Por Camilla Goés

STJ: Planos de saúde devem cobrir emergências em cirurgias estéticas

GM estreia produção de carros elétricos no Polo Automotivo do Ceará

Bolsonaro está “debilitado” e não irá a julgamento, diz advogado

STF mantém validade de delação sobre trama golpista envolvendo Bolsonaro

Cesta básica em Fortaleza registra queda de 2,04% em agosto de 2025

Do básico ao topo: Hapvida diversifica e aposta no premium

Brasil é 4º país com mais jovens fora da escola e do trabalho, alerta OCDE

Infância endividada; Por Gera Teixeira