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A casa de corpo e alma. Por Angela Barros Leal

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“Compro recheio de casas”, comunica ao amável público o adesivo colado nas laterais de um caminhão, parado perto de mim. Analiso o anúncio sobre rodas agigantando-se a meu lado. Empoleirado lá no alto, a dobra do cotovelo apontando para fora da janela, o motorista mantém a cabeça voltada para frente, respeitando o sinal de trânsito enquanto assovia alguma canção que não escuto. 

À altura dos meus olhos vejo um número de telefone e um endereço eletrônico, facilitando aos futuros clientes o acesso a seus serviços, como se a aquisição do conteúdo de uma casa fosse tão simples quanto unir um par de biscoitos, espalhar uma camada de geleia entre fatias de um bolo, ou preencher os espaços vazios de um peixe a ser levado ao forno. 

Deduzo que o proprietário da empresa mantenha atenção permanente ao noticiário no que se refere a mudanças de endereço, divórcios, falecimentos, separações de toda ordem. Construiu seu ofício a partir dos dramas e tragédias de quem se despede de situações até então estáveis, alteradas pelos movimentos tectônicos que, de um momento a outro, dividem nossa existência em metades: o antes e o depois. Nutre-se dos fatos profissionais e familiares de quem cresce na vida, de quem a abandona, ou de que tenta recomeçar. 

Calculo que conte ele com um bom número de funcionários, prontos a mergulhar o nariz nas informações diretas ou indiretas de quem parte e de quem se reparte, seguindo atentos os noticiários de jornais, os avisos em redes sociais, as mensagens passadas de boca em boca. Ou que ele próprio se encarregue de fazer isso, nesse destino ocupacional de comprar tudo o que venha a se constituir como “recheio” de uma casa.

O anúncio é genérico. Não especifica itens, não detalha uma possível seleção. Presumo que o forte do negócio seja direcionado à aquisição de mobiliário e eletrodomésticos, o foco de interesse mais provável. É provável que despreze papéis, fotografias, cartas e documentos, lembranças materiais das pessoas, em dados tempos. 

De prancheta na mão, ou munido da câmera em seu celular, é possível que o empresário inspecione garagens, sótãos, salas, quartinhos, depósitos e porões, em horários previamente agendados, que abra armários e gavetas com mão indiferente, que examine as paredes, avaliando telas que possam agradar a seus fregueses, a lojas de leilões e de antiguidades, que vasculhe closets, cubículos, despensas e recantos escuros, usando uma lanterna incansável e visão treinada, em busca do que possa lhe trazer lucro. Nada que seja humano lhe interessa.

Age como uma espécie inventariante da passagem de seus clientes sobre aquele chão que pisa, contido entre quatro paredes, experimentado em apagar os rastros deles. Deixa na porta de entrada seus sentimentos, se é que os levou, e impõe um valor financeiro ao que seleciona, desprovido de qualquer bagagem emocional além das demandas já conhecidas de seu mercado.

A tela pintada a óleo, retratando Nossa Senhora das Dores, o coração traspassado por estreita adaga, presente de casamento, há décadas postada sobre a cabeceira do leito onde nasceu uma geração, a ela dá pouco valor. A cama antiga, com seu colchão de molas, essa ele levará como quem faz um favor. A mesa de jantar e suas dez cadeiras, onde eventos foram celebrados, onde tantas crianças sentaram, concentradas nas tarefas de casa, são avaliadas por um quase nada, itens desprovidos de qualquer importância.

Da casa revirada, exposta, devassada, tão pouco se aproveita, ele com certeza irá dizer, como o fino negociante que é. O faqueiro de prata desparelhado, garfos e talheres perdidos no decorrer de infindas refeições, por muito pouco será comprado. As poltronas voltadas para o aparelho de televisão, o banco alto, de madeira maciça, a estante pesada, levar tudo isso parecerá quase um sacrifício pessoal. 

Na visita, ele desconhece a riqueza do que se passou dentro daquela casa, dos anos ou décadas de convivência entre seus moradores, dos riscos na parede atrás da porta, assinalando a altura dos filhos, do raio de sol avançando pela manhã na varanda, do som do piano tocado no fim de tarde, dos armadores de rede rangendo no descanso depois do almoço, das conversas, das discussões, das brigas e abraços, dos risos e do choro, dos animais domésticos ali nascidos, e de lá partidos. Nada disso é tratado por seu ofício.

Após ver o caminhão sumir de meu campo de visão, entendo que o dono do serviço usou a expressão perfeita para quem adquire apenas o que preenche o corpo da casa. Como o mais sábio dos anatomistas, ele sabe que jamais alcançará sua alma. 

 

Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus.jor.

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