Estudantes no Ahú; Por João de Paula

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“Vamos estudantes bandidos
, vamos estudantes bandidos!” — foi o que começaram a gritar presos comuns do Presídio do Ahú, em Curitiba, incentivando nosso time de futsal naquele dia em que nossos adversários eram estudantes da Faculdade de Direito da PUC, convidados pelo Cabral, nosso companheiro de prisão.

Os que costumeiramente torciam por nossa equipe com um simples “vamos estudantes”, para fazer a distinção, acrescentaram aquele adjetivo que, para eles, era sinônimo de preso. E não eram poucos os nossos torcedores: tínhamos conquistado a simpatia deles por termos nos solidarizado com jogadores de um de seus times, colocados no castigo porque guardas do presídio os consideraram violentos em uma partida contra nós. Acontece que as botinadas foram mútuas. Quando a punição foi retirada por solicitação nossa ao diretor do presídio — demonstrando-lhe que era injusta — muitos se tornaram nossos fãs.

Mas eles usavam também tratamentos conosco, no dizer de hoje, mais politicamente corretos, como, por exemplo, na comemoração do Dia do Detento, quando, pelo serviço de som instalado no pátio, o preso que fazia o papel de locutor disse com voz empostada: “Tenho a honra de registrar a presença dos nossos colegas subversivos.”

Os acontecimentos acima podem dar a impressão de que a vida carcerária ali era um mar de rosas. Bem ao contrário: a rotina do presídio era dura e mantida por uma disciplina rigorosa, que punia a mais leve transgressão. O Dia do Detento era um evento anual; o direito a banho de sol, incluindo jogar futsal no pátio interno, era de somente uma hora por dia; e as visitas de familiares, severamente vigiadas, só ocorriam aos domingos.

Depois de um certo tempo da nossa prisão, começaram a chegar ao Ahú outros presos políticos que, invariavelmente, vinham com sinais de tortura. Com a consolidação do sistema de total negação do Estado Democrático de Direito, instituído pelo AI-5, a tortura nos interrogatórios passou a ser regra. Nesse sentido, o caso da estudante Janete, de 17 anos, foi um marco. Ela foi trazida ao Ahú com visíveis marcas de tortura em seu corpo franzino, sendo levada diversas vezes para novas sessões de maus-tratos por agentes que não se sabia ao certo se eram do DOPS ou do Exército.

Esta questão, no entanto, mostrou-se irrelevante quando Aluízio Palmar, um dos presos políticos torturados em Curitiba e que esteve algum tempo conosco, esclareceu que a máquina de massacre montada ali depois do AI-5 tinha uma eficiente divisão de trabalho: oficiais do Exército interrogavam os presos, enquanto os agentes do DOPS os torturavam.

Um dia, quando aqueles agentes voltaram mais uma vez com a intenção de levar Janete, o diretor do Ahú lhes perguntou se assinariam um documento responsabilizando-se por uma eventual rebelião no presídio, pois havia sido informado que os presos comuns tramavam isso “caso a menina fosse torturada novamente”. Desistiram. Os que tiveram aquela atitude solidária eram homens embrutecidos, acusados de praticar todo tipo de crime.

No que me diz respeito, os primeiros meses de prisão foram de muita tensão por conta da possibilidade de descoberta da minha verdadeira identidade, o que resultaria em sério agravamento da minha situação carcerária e penal. E ocorreram dois sustos. O primeiro, quando um agente penitenciário gritou na porta da nossa cela: “Iran Vieira Dias, comparecer à segurança.” Para nós, a palavra “segurança” era sinônimo de encrenca. Chegando lá, dois agentes da Polícia Federal disseram-me que precisavam tomar novamente minhas impressões digitais, pois não tinha sido possível ler as que haviam sido colhidas anteriormente. Foi um alívio, pois lembrei que, no dia da prisão, deliberadamente movera lateralmente os dedos para borrá-las, com o intento de dificultar minha identificação. Eles refizeram a operação, e eu repeti o movimento lateral dos dedos.

Dias depois, o segundo susto: “Segurança de novo.” E lá estavam os mesmos agentes querendo mais uma tomada das digitais. Desta vez, desisti da manobra que fizera, pois temi que ela acabasse despertando suspeitas. Os federais não voltaram mais.

Ao começar nosso julgamento na Auditoria da 5ª Região Militar, iniciou-se outra fase de preocupação com a minha identidade. Como eram publicadas fotos das audiências nos jornais, havia o temor de que eu fosse reconhecido por agentes da repressão de outros estados. Para evitar isso, foi montado um cordão de proteção visual, com os colegas de estatura mais alta em torno de mim. À minha frente, sempre ficava o Hélio Urnau, um descendente de alemães de quase dois metros de altura. Eu sentava-me na última fileira do banco dos réus, resguardado dos flashes dos fotógrafos por uma solidária barreira humana.

A propósito, foi naquele lugar, em que eu ficava encostado em uma grade que nos separava do público, que um dia senti uma mão apertando meu ombro esquerdo, enquanto ouvia alguém sussurrar: “Tô contigo, caboclo.” Aquela voz e aquele modo de tratar-me eram inconfundíveis. Só podia ser o Bergson. E era. Quando me virei, deparei-me com o “Grandão” (apelido dele entre os mais próximos), sorrindo. Passando por Curitiba, de volta do exitoso Congresso Regional do Rio Grande do Sul e sabendo da minha prisão, mesmo tendo também prisão preventiva decretada, ele resolveu fazer-me aquela visita temerária. Com sua costumeira coragem, quebrando todas as normas de segurança e usando outra identidade, Bergson burlou os controles de entrada naquele antro de repressão para prestar-me solidariedade. Apertando sua mão por cima da grade, só pude dizer-lhe uma frase: “Vai embora logo daqui, maluco.” Minutos depois, através do janelão que dava para uma praça, com o coração apertado, eu o vi distanciar-se, com o braço esquerdo erguido e o punho fechado. Este era o Bergson Gurjão Farias.

Com cobertura da imprensa e presença de público, pode-se pensar que estávamos tendo um julgamento transparente e justo. Nada disso. O que acontecia ali era um jogo de cartas marcadas. Eis uma prova inconteste: o Conselho de Sentença da Auditoria, que negava todas as petições dos nossos advogados sobre direitos constitucionais básicos, certa ocasião aprovou um requerimento de transferência para prisão domiciliar de Elisabeth Fortes e Judite Trindade, nossas colegas de prisão, fundamentado na inadequação de mantê-las em um presídio masculino. Elas foram transferidas, mas, no dia seguinte, o major que era o presidente e os quatro tenentes que integravam aquele conselho foram destituídos e substituídos por ordem do comando do Exército na região. As duas estudantes foram levadas novamente para o Ahú. Ficou claro que havia uma decisão dos altos escalões locais do Exército de nos condenar a priori e à revelia de qualquer processo legal. O julgamento era uma encenação.

Pouco tempo depois, a condenação veio, inexorável, para todos nós, com penas de quatro anos para uns e de dois para outros. Após apelação ao Superior Tribunal Militar, elas foram reduzidas, respectivamente, para um ano e meio e para um ano. Fiquei no segundo grupo.

Cumprido o ano de prisão, devolveram-me a certidão de nascimento e o título de eleitor com o nome Iran Vieira Dias, que eu portava quando fui preso. Tomando todas as precauções, viajei para São Paulo, onde assumi meu cargo de diretor da UNE. Mas isto é outra história.

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