A prosa carrega em si um risco inevitável, porque nela a palavra não se limita ao ato de contar, mas se projeta como eco da vida. Quando uma narrativa ganha corpo, ultrapassa o território do simples relato e se transforma em experiência compartilhada. É nesse ponto que o fio se torna delicado: aquilo que para uns é motivo de riso e catarse, para outros é ofensa, desrespeito e motivo de repúdio. A mesma cena pode ser recebida como comédia ou tragédia, dependendo do olhar que a acolhe.
A linha que separa o riso da indignação é quase invisível. Não está naquilo que é narrado, mas na forma como cada indivíduo organiza suas próprias memórias, dores e crenças. Uma piada pode arrancar gargalhadas em uma roda, mas provocar silêncio constrangido em outra. Uma frase que parecia inofensiva pode despertar a lembrança de uma ferida antiga. É nessa imprevisibilidade que reside tanto o poder quanto o risco da prosa.
Narrar é sempre um ato de exposição. O narrador se arrisca, porque não controla o efeito de suas palavras. A intenção pode ser a mais pura, mas o resultado se perde em múltiplas interpretações. É como lançar uma pedra em um lago: não há domínio sobre o alcance das ondas. Cada leitor interpreta segundo o que já carrega dentro de si. A graça, a dor ou a empatia não estão apenas no texto, mas na lente que cada um usa para enxergá-lo.
Essa complexidade explica por que escritores, cronistas e humoristas são exaltados e atacados na mesma medida. O mesmo texto pode ser celebrado como genialidade e condenado como afronta. A fronteira é instável porque atravessa territórios íntimos, onde a palavra toca nervos expostos. Quem escreve ou fala, mesmo sem querer, desperta memórias alheias. Às vezes esse toque amadurece; em outras, apenas provoca rejeição.
Não é fácil identificar o ponto em que a narrativa atravessa essa fronteira. Talvez porque ele não exista como linha fixa, mas sim como lugar móvel, que se desloca conforme a sensibilidade e a história de cada pessoa. Aquilo que hoje causa gargalhadas pode amanhã ser lembrado com dor. E o que ontem parecia afronta pode se transformar em lição com o tempo.
A prosa exige cuidado, não o de se calar, mas o de compreender que a palavra nunca é neutra. Ela carrega ecos, desperta memórias, abre fendas ou fecha cicatrizes. Cabe ao narrador reconhecer esse poder e aceitá-lo, mesmo sabendo que jamais agradará a todos. Se desperta reação, cumpriu sua função. E talvez aí resida sua beleza: na capacidade de atravessar a indiferença e lembrar que viver é sempre caminhar sobre uma linha tênue.
