A biblioteca do padre; Por Angela Barros Leal

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O que lia o Padre Cícero, padrinho dos romeiros, patrono dos penitentes, padroeiro e fundador da cidade de Juazeiro do Norte. 

O que lia o padre, quando sobrava a ele algum curto espaço de tempo. Quando não precisava conversar, com seguidos visitantes, sobre assuntos administrativos locais. Quando se via liberto da missão de atender a quem buscava orientação moral, espiritual. Quando retornava da caminhada até à janela dianteira da casa, de onde acenava aos devotos aglomerados diante dela. Quando descansava de redigir suas cartas para interlocutores que o buscavam – o que lia o Padre Cícero.

Lia, por exemplo, as Orações de Cícero. Não suas próprias orações, é claro, mas os discursos de seu homônimo, o político Marco Túlio Cícero, considerado um dos maiores tribunos romanos. Um defensor da ética, da honestidade, do caráter, tópicos mais que adequados às homilias que iria endereçar a seu povo.

O livro se encontra na prateleira de uma das estantes da casa dele, na rua São José, nº 242, Juazeiro do Norte. Lá ele residiu por poucos meses, na casa hoje transformada em Museu, que ganhou renome por ter sido seu ponto de partida, aos 90 anos, para os braços de Deus. 

Padre Cícero lia também Etienne Bonneau Condillac – abade e filósofo francês, nascido em Grenoble em 1715 (como assegura o meu Dicionário Prático Ilustrado, pois que ainda consulto material impresso). Sei disso pelo estado físico em que se encontra o primeiro dos quatro volumes de Condillac na biblioteca do padre, escritos em francês, tratando da origem dos conhecimentos humanos. Tema igualmente de valor para práticas e prédicas.


No original lia Chateaubriand – não o nordestino Francisco de Assis Bandeira de Melo, mas François-René, francês, autor de O Gênio do Cristianismo (Le Gènie du Christianisme) –, obra adequada a figurar na biblioteca de um religioso.

Lia o Antiphonaire Romain, livro que trazia os cânticos das horas canônicas para todos os dias do ano, dentro de uma sequência cuja prática se limita hoje a mosteiros e conventos: Laudes, às 3h da madrugada; Prime, no alvorecer; Terce, às 9 da manhã; ao meio dia a Sext; às 3h da tarde a None; as Vésperas na hora entre o cão e o lobo (entre le chien et le loup), como dizem poeticamente os franceses; as Completas antes de deitar; as Matinas à meia noite. Igualzinho às doses de um medicamento: a liturgia das horas, de três em três horas, seguindo os ponteiros dos relógios.

Padre Cícero lia, em latim, o tomus secundum do Compendium Theologiae Moralis, o Compêndio de Teologia Moral do padre Jean Pierre Gury (ou Ioanne Petro Gury), em sua 17ª edição no ano de 1866. Quase um complemento ao Livro das Horas, por conter, entre suas mais de mil páginas, as instruções sobre a maneira de orar (De modo Horas recitandi).

Na busca de como melhor pronunciar as palavras na língua inglesa, Padre Cícero fazia uso do Portuguese and English Pronuncing Dictionary, assinado por João Fernandes Valdez. Para enriquecer seu vocabulário, nas árduas viagens a Roma, consultava o Vocabolario Italiano. Ampliava o universo de conhecimentos linguísticos com o Nuevo diccionario francês-español, dos autores Vicente Salvá Y Pérez e Juan Batista Guim.

Lia a Theologia Universa ad usam sacrae theologiae candidatorum, obra em quatro volumes, direcionada aos candidatos aos estudos da teologia sacrada, tendo como autor R.P. Thoma Ex Charme.


Deus estava presente em tudo o que lia, pelo que se percebe em mais um dos livros de sua biblioteca: L’Idée de Dieu, escrito pelo membro da Academia Francesa, filósofo Elme-Marie Caro, debatendo o positivismo da época (1864), combatendo os argumentos de temas contemporâneos levantados por figuras como Kant e Hegel, que poderiam se configurar como ameaças à fé cristã.

Qual o grau de dificuldade que teria Padre Cícero enfrentado para obter esses livros, em seis idiomas, vindos da Capital ou diretamente do exterior, trazidos por amigos, adquiridos por ele próprio – nada disso eu sei. 

E como deixou que se formasse a ideia de ser ele uma pessoa de alma simplória, um simples cura de aldeia, perdido em um pontinho no meio do mapa-múndi, comandando um lugarejo que não era ainda sequer uma cidade – também não sei. 

Pode ser que o nome desse desprendimento seja: Humildade.


Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus Poder desde 2021. Sócia efetiva do Instituto do Ceará.

 

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