As fadas-madrinhas haviam economizado em generosidade com a menina. O rosto teria sido uma perfeição, com as bochechas feito duas maçãs maduras, com os olhos claros e pestanudos, com uma boca vermelhinha, pronta para se abrir em um sorriso iluminado – mas havia o nariz. No meio do rosto de boneca, como se fosse no ponto central de um alvo, a ser atingido por uma flecha, ou por olhares surpresos, destacava-se o nariz.
Um nariz que não era apenas desprovido de harmoniosa beleza, mas que dominava e quase escondia todos os outros toques encantadores do rosto dela. Não que houvesse uma deformidade. Nada disso. Tratava-se de um apêndice funcional, com narinas úteis para entrada e saída do ar, só que muitos centímetros distanciado de qualquer padrão simétrico de beleza, esse raro dom medido em centímetros e milímetros.
E não apenas era igualzinho ao nariz do avô paterno, como também, pelo que mostravam as fotos antigas, igualzinho ao dos antepassados dele. Vinha de geração em geração, o nariz que tinha aspirado o oxigênio de selvas e matas virgens, farejado a proximidade de predadores bípedes ou quadrúpedes, pressentido o suor do corpo dos estrangeiros, respirado o aroma forte dos animais de carga, se habituado ao cheiro de produtos químicos, até desembocar ali, no centro do rosto da menina.
Na infância o nariz não a incomodava, como era de se esperar. A chegada da adolescência é que veio a transformar em problema a existência do nariz. O espelho passou a ser um dos maiores inimigos dela, tanto de frente como de perfil. Já o movimento suave dos cabelos, o lápis ressaltando os olhos claros, o batom realçando a boca, esses se tornaram seus fiéis aliados, desviando a atenção da falha inconveniente.
Quando completou 18 anos, ela pediu de presente aos pais uma cirurgia plástica. A mãe teve dúvidas: não só considerava cedo, e de certa maneira o nariz da filha era especial, por lembrar o rosto do falecido pai. Mas em pouco tempo lá estava a menina estreando um nariz novo, recortando para fora das fotos antigas todos os indícios do seu rosto anterior.
Dedicou-se a encontrar um namorado, um noivo e depois um marido, que fosse dono de um nariz patrício, refinado, capaz de se projetar do rosto como um punhal de fina lâmina, aparando para os descendentes as arestas da herança do avô. E assim se deu.
O primeiro filho, um menino, nasceu “a cara do pai”, na palavra dos parentes, que a conheciam de antes a jovem mãe. Veio dotado de um nariz que seguia o conceito de normal, sinalizando a “melhora da raça” – como comentava o pai dela, pouco afeito à novilíngua dos tempos.
A filha, nascida dois anos depois, não recebeu as mesmas características física. As fadas-madrinhas trouxeram de volta a carga genética do passado, sem tirar nem pôr um milímetro, revivendo o sofrimento da mãe, que de vez em quando via o marido olhando com certa estranheza para a menininha, um ponto de interrogação mudo suspenso sobre a cabeça dele.
Ela passou a economizar o dinheiro necessário à inevitável interferência cirúrgica. Quando a filha completou 16 anos, entregou não mãos dela um cheque cheio de zeros, no valor cobrado pelo cirurgião para a realização da plástica. Para imensa surpresa materna, a menina disse que preferia esperar mais um pouco, e destinar o dinheiro para comemorar seus 18 anos com uma viagem.
As narinas afiladas da mãe estremeceram de susto, arfaram como cavalos fogosos, ansiando por oxigênio e por entendimento da decisão da filha. Que disse a ela nunca ter dado a menor importância ao fato de ser seu nariz assim ou assado, e que, ao contrário, considerava seu apêndice nasal como responsável pela “personalidade” do seu rosto. O nariz sinalizava sua tribo originária, seu sinal de nascença, suas raízes étnicas juntas e misturadas.
O nariz era sua marca identitária, o que a diferenciava das outras jovens, aquelas cujas narinas eram um acessório delicado, apropriado a aspirar perfumes raros, o aroma de jardins ingleses, os ares de ambientes rarefeitos.
A mãe aceitou a decisão a contragosto. Hoje, quando enxerga o rosto do avô, e seu próprio rosto prévio, nas fotos e vídeos enviados pela filha – que cresceu, casou-se e foi morar em outro país –, hoje ainda lamenta não ter sido insistido mais para a realização do procedimento cirúrgico, como ouvi dela mesma.
Em compensação, enche o coração de alegria quando vê, nas mesmas fotos e vídeos, o narizinho esbelto, aristocrático, o narizinho fidalgo da neta.

Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus Poder desde 2021. Sócia efetiva do Instituto do Ceará.







