
Caro tio Raimundo
O frequente assunto em nossas conversas — do teu legítimo incômodo dos anos de infância — foi dando lugar a uma compreensão, compreensão tardia, sobre os condicionamentos e circunstâncias dos teus pais, meus avós. Esse assunto, sombra que lhe seguia, foi retirando-se de cena, apaziguando em teu espírito. Na semana passada deu-se o epílogo, no encontro com eles, pai e mãe, na sepultura comum, e conjecturo que também na dimensão espiritual, onde vocês agora se unem e esperam nós outros.
Nossa proximidade, de tio e sobrinho, aconteceu em distintas fases na linha do tempo.
O que agora me ocorre são os bons quatro meses que você passou conosco em Teresina, nos idos de 1995, na nossa casa. Companhia que adicionava à casa presença familiar, convívio, brincadeiras. Percorríamos os restaurantes daquela cidade, apreciando o ambiente, escolhendo pratos, no prazer dos gostos e sabores. Chegamos até ao prazer dos excessos: fartura, regozijo, saúde. Quatro bons meses, temporada benfazeja, para sempre guardados na melhor memória.
As nossas conversas seguiam fáceis. Parece que ali estávamos para conversar, para continuar a conversar, sobre assuntos diversos, e nos deixar incidir a influência recíproca. E, à noite, duas ou três doses de uísque. Memorável ritual.
O que aqui quero destacar era o surgimento de uma perspectiva brilhante que você expressava. Era quando o prelúdio daquela tua maneira alçava voo. Era raro, porque a luz do extraordinário, disso sabemos, é mesmo rara.
Entretanto, essas elevações existiam — o que é absolutamente improvável nas pessoas — na medida em que nossa educação, nossa cultura, é toda ela de nivelamento, de pragmatismo, de repetição.
O exemplo que mais ficou gravado em mim surgiu quando você arrematou um diálogo nosso afirmando que qualquer assunto aprofundado, desdobrado, esbarra no mistério. É nossa condição. É nosso desamparo. É também nosso bálsamo.
Você conseguia conferir uma forma teatral a esse conteúdo, à maneira de uma poesia gestual: voz e tom na medida, chegando a nós em outra camada.
A tua maneira, tão tua, tão natural, de não se adequar ao convencional, de ter um estilo tão próprio, era um ensinamento a quem atento estivesse; a quem lograsse ultrapassar o lado que se fez oneroso dessa tua marca.
Nos últimos anos, em situação difícil no plano financeiro, você conheceu o apoio da família. Entretanto, viveu revestido de dignidade firme essa situação. E esse modo de viver uma circunstância difícil, de receber e ficar bem, também foi-me um ensinamento.
O que levou você a chegar a esse ponto não me interessa aqui. Quero registrar como você foi teimoso e forte em viver essa situação.
E teve a sabedoria de não renunciar, à revelia das ladainhas e dos chapados avisos médicos, às doses diárias da cor de ouro, do som das pedras de gelo, do teu uísque.
Não poderia deixar de testemunhar o teu modo tranquilo de conviver com divergências, com o diverso. Você não elegeu o pressuposto, tão comum entre nós, de ser de pronto refratário, o apego ferrenho ao reduzido pequeno mundo das poucas pequenas verdades que nos sustentam. Você estava livre dessa insegurança.
Não sucumbiu ao restrito confinamento de crenças e superstições às quais foi submetido durante significativa parte da vida. E a tranquilidade — quase indiferença — às críticas. Tudo isso você dissolvia em um quadro referencial ampliado e na confiança de que o futuro vai depurando, vai discernindo.
Sempre achei que teu singular talento, teu brilhantismo, essa dádiva dos deuses, merecia a correspondente dedicação, uma efetivação que ocorreu apenas de uma maneira outra — talvez tênue, talvez alheia às expectativas, talvez enredada em questões subjetivas que se demoraram além do que sugere a brevidade da vida.
Mas quem somos nós para julgarmos, à maneira de um juízo final, um outro ser.
Essa minha reclamação para você encontra-se distante da pretensão de julgamento; é antes a de quem, no bem-querer, vislumbrava para aquele tio querido mais e melhor. “Que fiz, dos verdes anos, de afoito anonimato, do tempo e seus pendões, de espigas por ceifar?”
Deixo aqui registrada tua biografia oficial: nascido em Fortaleza, no dia 15 de março de 1943, pisciano emblemático, filho do casal Myrthes e Édson; o quarto filho de um time de dezesseis. Batizado com o nome inteiro do avô paterno, o próspero fazendeiro e exportador de café, Raimundo Rodrigues Lima. Morador da Quinta da Mister Hall, residência do vovô e da vovó: aquela amplitude, aqueles espaços, aqueles silêncios da tarde, o conjunto das árvores, o som dos animais no quintal.
O seminarista no início da juventude, a foto de batina preta, a notória beleza física, o brilho confiante dos olhos verdes iniciando a jornada da vida. (Não consigo divisar traços de ex-seminarista em você.) Graduado em Economia e Direito pela UFC, em Filosofia pela PUC de Belo Horizonte, estudante do CAEN. Pai de seis filhos. Professor de Matemática. Funcionário da Caixa Econômica, onde contribuiu radicalmente para a renovação de métodos. Morador do Rio, de São Paulo, de Brasília, de Belo Horizonte, de Fortaleza.
Para encerrar essas linhas, dois assuntos.
O primeiro: nossa chegada — minha e do tio Paulo — à agência da Caixa onde você trabalhava, no Centro, por volta do meio-dia, para irmos almoçar. Aquele almoço de nós três, nos idos de 1992, que acontecia semanalmente. Você, de tão concentrado que estava, levou minutos para perceber nossa presença, os olhos fixados em um documento. Um traço teu: a capacidade de concentrar-se. Tio Paulo admirado.
O mesmo quando você lograva resolver intrincados problemas de xadrez, desafio até para quem estudava o jogo — o que não era o teu caso. Ainda assim, partia para o teu modo concentrado. Resolvia. Sabendo da dificuldade daquelas soluções, tua aptidão materializava uma surpresa para mim.
O segundo: o teu incômodo com o teu filho, incômodo pela tua ausência na vida dele. Na separação do casal, você veio morar em Fortaleza. Ele, criança, ficou com a mãe, a querida tia Martinha, em Belo Horizonte. Você defendia-se enaltecendo o pragmatismo responsável da tia Martinha e a tua necessidade emocional de retornar a Fortaleza. Mas o incômodo estava ali. Você soçobrou na repetição, de outra maneira, do relacionamento entre as gerações, entre pai e filho.
Aos três filhos com a mineira tia Martinha, a atilada funcionária do Banco do Brasil, seguiram-se três filhos de um segundo casamento, que lhe foram companhia colada no último capítulo de tua vida.
O que gostava mesmo era de ver você alegre com a minha chegada. De você que arrumava qualquer motivo para ficar bem e comemorar a vida. Sorrio até da tua facilidade em desmarcar compromissos, em desligar-se, em somente dar continuidade ao que gostava. Aprendi a conviver com esse teu lado e a exercer tranquilamente minha reciprocidade. Desse conjunto de características emanava leveza. Você era uma boa presença. Aqui e ali, aprendia com você: esse é meu termômetro.
Minha mais antiga lembrança sobre você remete ao meu avô Temóteo que, em janeiro de 1972, estando nós três na sala da casa dele, sentenciou: “Raimundo é filósofo”. Aos sete anos, gravei essa síntese, vinda do outro lado da família, a paterna.
Depois li em algum livro que todos podemos e devemos ser os filósofos de nós mesmos: buscar nossas próprias respostas às questões da vida, conferir sentido às nossas práticas.
Tio Rai-Lima, mais teria a dizer, em ambos os sentidos, mas vou por aqui encerrar, lembrando o conselho de Marx: uma geração há de ser generosa ao lançar o olhar sobre outra.
Mundo mundo vasto mundo, Raimundo. Raimundo viveu a vida. Hora de descansar. Então descanse em paz, meu camarada — agora em outra etapa do mistério, quem sabe melhor.







