
Não bastam ao trabalho de restauração de bens públicos projetos de make up, cuidados de “atualização” que apenas evitem que fiquem “tão antigos” ou o uso de novos materiais para dar-lhes uma “carinha nova”. Antes disso, é preciso realizar os ajustes necessários para que, ao atenderem às demandas do uso contemporâneo ou da preservação, não percam os traços da sua origem.
Quando se trata de logradouros públicos, deve prevalecer a arqueologia dos lugares, a defesa das marcas fundacionais, para que elas não se percam sob o peso da atualidade impositiva. “Restaurar” não é “recriar”: é recuperar a obra dos danos produzidos pelo tempo e pela utilização, pelas intempéries ou pela ação destrutiva dos homens (e das mulheres).
Da mesma forma, “requalificação” não deve significar, como sugerem os dicionários e o jargão da burocracia patrimonial, apenas “qualificar de novo”. Sua verdadeira qualificação é dada pela história e pela memória coletiva, pelos eventos que revelam os valores comuns e permanentes de um povo.
Essas reflexões vêm a propósito da sétima intervenção realizada na Praça do Ferreira, em Fortaleza. O lugar, em sua projeção histórica, não se resume à “Coluna da Hora” em versão estilizada, nem ao piso de pedrinhas portuguesas no lugar do ladrilho original, nem aos bancos ou jardineiras. Os traços provincianos que enchiam de lembranças a velha praça foram cedendo lugar ao “bota-abaixo” de muitos prefeitos, eleitos ou nomeados — como se tivesse baixado sobre Fortaleza o espírito do barão Haussmann em sua reconstrução de Paris.
A praça também é o casario do entorno, que deixou o logradouro, em sua fundação, com ares do quadrilátero geométrico das praças peninsulares — a plaza mayor — em Portugal, na Espanha e em outros lugares. As praças são, por sua própria índole e destinação, um compósito cultural, social e histórico indissociável. Afinal, tivemos, naquele tempo, os “ladrilhadores”, os primeiros urbanistas, precursores dos controles sobre as cidades — autoridade da qual ainda hoje nos ressentimos.
Não se trata de recuperar o que foi destruído pelo comércio de varejo, biroscas e miudezas que descaracterizaram as obras sobreviventes, muitas afogadas em platibandas indecentes e toleradas pela cumplicidade dos governos e pela indiferença — ou ignorância — dos fortalezenses.
A restauração plena da Praça do Ferreira exigiria um projeto arquitetônico mais ambicioso, incluindo o restauro das fachadas das edificações ao redor, para que renascesse a ideia do que o lugar foi um dia, quando Fortaleza assumia feições urbanas em um passado salvo do abandono.
Por fim, é necessário considerar a utilização social do espaço, sua destinação como equipamento cultural, articulando as estruturas já existentes com outras que venham a ser instaladas. A principal praça da cidade não pode continuar sendo um ponto de sobrevivência mínima e abrigo de usuários de drogas, sob a indiferença dos poderes públicos.
Aí, sim, a palavra “requalificação” ganharia sentido.
