“A tarefa dos intelectuais é determinar e organizar a reforma moral e intelectual, isto é, adequar a Cultura à função prática […]” — Gramsci
“Não sou eu quem sou forte. É a Razão. É a verdade.” — Émile Zola
Como se faz um escritor? E como ocorre o processo de transformação da condição de leitor em intelectual?
Muitos bibliólogos — dessa espécie de cultores do livro, que leem e não apenas guardam — tentaram esclarecer, por motivações variadas, o que faz de um “intelectual” um intelectual e de um “escritor” um escritor.
No começo, muitos falavam e expunham o que, muito tempo depois, veio a chamar-se de “ideias”. Eram, ainda, os copistas; tempos depois, com o advento do “homem de Mainz”, o verbo fez-se tipografia e os rolos de papiros transformaram-se em incunábulos. Os primeiros copiavam, não eram editores. Os segundos escreviam, imprimiam, vendiam. Havia, ademais, os leitores de viva voz, precursores das redes sociais nas feiras e mercados: mercadores, colporteurs…
Clemenceau, político e jornalista francês, modelou a imagem do “intelectual” e dela fez a figura de um ser reconhecidamente inteligente, capaz de influenciar a produção de ideias e de paradigmas culturais na sociedade. Zola o acompanhou na defesa de Dreyfus, questão que expôs a França a um embate contra seu próprio passado, saído de cenários militares de guerras e conquistas. Octave Mirbeau e Anatole France apoiaram Clemenceau, que deixou o texto “À la dérive”, publicado no jornal L’Aurore.
“N’est-ce pas un signe, tous ces intellectuels venus de tous les coins de l’horizon, qui se groupent sur une idée et que s’y tiennent inébranlables?” — Georges Clemenceau, L’Aurore, Paris, 28.01.1898
Com a metáfora “intelectual”, a mídia nascente, servida de suas tecnologias primitivas, contrapôs os exércitos de salão — herdeiros da tradição de generais e marechais da nobreza francesa — aos problemas sociais que a Revolução Industrial trazia à tona.
Em meio à formulação da teoria da “luta de classes” no empreendimento político de Marx e Engels, a categoria “intelectual” viria a calhar: espécie de alter ego da sociedade, de onde se colhiam verdades absolutas para uma nova visão de mundo. Não tão novo quanto o de Huxley, mas novo o suficiente para aprisionar o futuro a um passado inamovível, firme como o rochedo de Gibraltar.
A esse estamento político foram associados jornalistas, escritores, universitários e artistas — quaisquer que fossem as artes que produzissem.
A estratégia para a categorização do “escritor” como mecanismo central dos setores “modernos” da sociedade e expressão da intelligentsia seguiu os mesmos caminhos. A mídia, assim como a universidade, os mosteiros, o teatro, o cinema e, mais recentemente, os canais digitais, serviria de suporte e sustentação ao papel político reservado à intelligentsia e aos seus intérpretes.
Muito cedo, o trabalho do escritor, reconhecido por ofício e talento explícito, foi incorporado — em situações convenientes — aos hábitos da “vida literária”. O convívio com práticas comuns ao meio, da indulgência crítica entre autores, fez do escritor, guardadas as exceções, instrumento valioso para a celebração de juízos convergentes, em unânime aceitação de julgamentos definitivos.
O que define o escritor, como senhor do seu métier, é o leitor: a criatura que faz mais do que simplesmente ler; analisa, em busca do entendimento sobre o texto, num esforço idôneo de apreensão e redução do que foi lido.
Barthes, tantas vezes citado, falava da estreita relação entre “emissor” e “receptor”: a criação como processo, a completar-se com a percepção. Das transformações incorporadas por propósitos e ideias — entre quem as formula e quem as percebe e compreende — constroem-se visões particulares de uma mesma realidade.
Com a expansão das universidades e o posicionamento crítico de um círculo de ativistas nos serviços do Estado, no Clero e na mídia, criaram-se pontos de resistência e de militância participante na maior parte dos países, inclusive entre os mais desenvolvidos no Ocidente. As nações das periferias — na Ásia, África e América Latina — não escaparam dessa influência colonizadora.
Por outras vias, seguindo estratégias claras de internacionalização da construção do comunismo mundial — com objetivos definidos e ações enérgicas de Trotski —, o Komintern (ou Terceira Internacional) não só criou táticas de infiltração do Partido Comunista na Europa e em partes sensíveis do mundo subdesenvolvido, como também promoveu a mobilização de intelectuais e artistas, incorporando-os ao grande exército cultural, sob o manto de atividades intelectuais supostamente desinteressadas.
Régis Debray referiu-se a essa categoria oficial, detentora de autoridade canônica, como la haute intelligentsia, magnificação do papel desses guias da inteligência. Definiu-a como “o conjunto de indivíduos socialmente legitimados para exprimir publicamente as suas opiniões pessoais acerca de questões públicas, independentemente dos procedimentos regulamentares a que se devem submeter os cidadãos comuns” (Le Pouvoir intellectuel en France, Éditions Ramsay, Paris, 1969).
O reconhecimento dessas qualidades incomuns é, hoje, referendado pela universidade, pela mídia e pelo Estado — sob a chancela, naturalmente, do governo e dos partidos, com domínio pleno dos meios que a autoridade estatal dispõe para pronto e imediato uso.
