A largura dos caminhos; Por Angela Barros Leal

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Abri os olhos para umas anotações escritas a meu lado: “Pagaram em 25 randes e o troco em zlotys.” Olhei para o texto com a cara cuidadosa de quem olha um eclipse solar. “Pagaram com uma lua cheia e suas consequências” – continuava o escrito, em letra que mal reconheci como sendo minha.

A custo, extraí do fundo confuso da memória a lembrança onírica de haver acordado de madrugada, e anotado alguma coisa na agenda que mantenho na cabeceira. Tateio em busca dos óculos, e do inseparável celular, para uma consulta ao onipresente Google, que de pronto me dá a resposta. 

Que sonho eu estaria vivendo ao registrar, na fronteira entre o sono e o despertar, a moeda sul-africana e o dinheiro polonês – que nunca sequer vi de perto. “Pagaram com dois litros de lágrimas e com três risos no bolso do colete” – eu continuara a escrever no escuro, com uma letra que me pareceu alheia.

Parece que andei sonhando memórias coletivas, é o que deduzo das consultas digitais a intérpretes dos sonhos.

“Sonhar com dinheiro estrangeiro significa que você vai pensar e decidir agora mais rapidamente” – esclarece de modo objetivo um dos sites visitados. “Tomar ar lhe fará bem, mesmo que seja apenas uma curta caminhada. Você encontrará um novo caminho, mais positivo.” Linguagem de horóscopo. Tamanho único. Mas não custa encher os pulmões de ar. 

Sonhar com o ato de receber pagamentos devidos terá sido o “reconhecimento de um trabalho feito, expectativas sobre o que irá acontecer e, sim, vai acontecer” – anima outro site, de clareza óbvia, aproveitando para recomendar o jogo no jacaré na dezena (57), na centena (257) e na milhar (6257).

E por qual razão teria eu recebido pagamento em forma de lua cheia e suas inexplicáveis consequências, em meio ao acolchoado de sonhos: descartando razões poéticas, pois já estou quase inteiramente desperta, e a poesia perde espaço a cada minuto de vida real, sonhar com uma lua cheia “pode refletir um estado de plenitude interior e a realização de metas pessoais.” 

Coisas que parecem simples, porém não tanto como a frase seguinte escrita no papel da cabeceira: “O resto foi devolvido na conta dos milagres”. Exatas 26.191 pessoas acessaram o sonho do milagre, informa o site, avisando que “acontecimentos inesperados irão incomodar você.”

Bobagens, resolvo, enquanto a porta para elucubrações poéticas vai se fechando. Quem tem tempo para essas fantasias, digo a mim mesma, ouvindo o bater da porta no batente, o fechar do trinco, o passar da chave que deixa do lado de fora o mundo da poesia.

Há muito para ser feito no mundo real. As demandas usuais do dia a dia. Compras a fazer. Reuniões a participar. Encontros a agendar. Gavetas (ah, as gavetas!) a organizar. O espaço para a poesia é estreito, furtivo, costuma ser roubado da realidade com uma inegável dose de violência. O dia não costuma ceder território a fantasias.

Daí minha surpresa ao erguer os olhos, em uma esquina de múltiplos semáforos, e ler em um dos tantos outdoors espalhados pela cidade, uma mensagem simples que parecia a continuação do meu sonho: “Os caminhos do mundo são largos”.

Na babel de veículos e buzinas e pessoas são largos, sim, os caminhos do mundo, descobrira há muito tempo Fran Martins, escritor e jurista cearense, autor de romances marcantes e de pareceres jurídicos notáveis, sua imagem preservada pela maneira como conseguia empregar armas tão diferentes para decifrar as coisas do mundo. 

Sobre ele, sei ter sido o impetuoso promotor de um festival de poesia em 1942, ano em que a guerra assombrava povos e continentes, e ter sido ele quem, diante dos ataques recebidos pela suposta inadequação entre o tema e o momento, justificara que naquele ano, mais do que nunca, a poesia era vital.

Segui meu rumo repensando o recado dado: são sim, tão largos os caminhos, meu caro Dr. Fran Martins, que neles há de caber tudo – inclusive o tempo para os sonhos e o espaço sempre aberto no coração para guardar os instantes indispensáveis da poesia.


Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus Poder desde 2021. Sócia efetiva do Instituto do Ceará.

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