– E os dólares?
Ao ouvirmos esta pergunta do guarda da fronteira, depois de respondermos que pretendíamos permanecer três dias no Chile, Ruth e eu nos olhamos sem nada entender, como se perguntássemos um ao outro: dólares? que dólares?
Percebendo nossa cara de espanto, o guarda logo explicou que, para entrar no Chile, cada turista precisava apresentar uma quantia em dólares correspondente ao número de dias de permanência, calculada a partir de um valor diário que não recordo mais. Nós ignorávamos essa exigência — e não tínhamos um único dólar.
A solução foi pedir ajuda àquela brasileira antipática que havia embarcado conosco em Buenos Aires e que estava um pouco atrás na fila. Ela nos emprestou o dinheiro, e Ruth praticamente a obrigou a aceitar seu relógio como garantia. Assim, conseguimos atravessar a fronteira e, já seguros no país que ostenta em seu hino nacional a frase “asilo contra la opresión”, abrimos o jogo: Ruth e eu revelamos que estávamos vindo para pedir asilo; ela contou que vinha visitar o noivo, também asilado. Vieram então a devolução dos dólares e do relógio, seguidos de risos, histórias e alívio geral.
Nossa companheira de viagem nada tinha de antipática. Sua atitude reservada durante o percurso argentino refletia apenas a cautela de quem estava consciente dos riscos de viajar por um país ainda sob a ditadura de Alejandro Lanusse, herdeira do golpe de 1966, inspirado pelo mau exemplo brasileiro de 1964. Naquele momento, o Chile era um dos poucos países sul-americanos onde a democracia resistia.
Não enfrentamos problemas de segurança durante a viagem. Havíamos decidido comprar as passagens do Rio até Buenos Aires e, somente na capital argentina, adquirir o trecho para Santiago. Quando embarcamos na rodoviária Novo Rio, às vésperas do Carnaval de 1973, queríamos parecer apenas um casal de namorados indo passar uns dias em Buenos Aires. Nada de suspeito: tratava-se de um deslocamento corriqueiro entre dois regimes militares.
Logo após a partida, Ruth puxou uma conversa sobre nossos sentimentos em relação àquela viagem. Foram muitos, mas três ficaram gravados: alívio, saudade e esperança.
• Alívio, porque as tensões dos últimos meses haviam diminuído, ainda que houvesse apreensão quanto à saída do Brasil e à travessia da Argentina.
• Saudade, pelos familiares e amigos que, em Alcântara, Vila da Penha, Senador Camará e Umuarama, nos apoiaram e acolheram secretamente, correndo riscos.
• Esperança, sobretudo de voltar a viver em democracia — primeiro no Chile e, depois, definitivamente no Brasil.
Sentimos surpresa com a emoção que nos tomou ao atravessar a sisuda São Paulo, cidade onde havíamos morado. Parafraseando Cândido das Neves em sua canção Lágrimas, experimentamos algo que “sentíamos, mas não sabíamos dizer”. Mais adiante, ao cruzar o Vale do Ribeira, o passado nos trouxe lembranças e o presente nos cutucou com apreensivas interrogações.
Na passagem da fronteira entre Uruguaiana e Passo de los Libres, o momento foi de grande tensão: o motorista recolheu nossos documentos e demorou a voltar. Quando finalmente disse que estava tudo em ordem, o alívio foi imenso. Recebemos de volta nossos documentos… falsos. Enquanto atravessávamos a cidade argentina, Ruth sussurrava ao meu ouvido: “livres, no Passo de los Libres; livres, no Passo de los Libres; livres, no Passo de los Libres.”
O trajeto até Buenos Aires seguiu sem incidentes. De lá, seguimos rumo ao Chile pela província de Mendoza, maravilhados com a beleza da região e com a majestosa Cordilheira dos Andes, que nos ajudava a esquecer por instantes o risco de novos controles policiais. Já em território chileno, mais confiantes, começamos a interagir com outros passageiros. Por coincidência, conheci um chileno chamado Juan, também estudante de medicina em Buenos Aires, que ia passar férias em Santiago.
Ao chegarmos, pedimos a ele indicação de hospedagem barata. Juan nos levou a uma pousada, pagou nossa diária sem que soubéssemos e se despediu com um abraço fraterno. Esse foi o primeiro gesto de solidariedade chilena que recebemos — mas não seria o último.
Pouco depois, ainda na recepção do hotel, assistimos a uma briga repentina entre dois homens que trocaram socos até que um caiu desabado no chão. O recepcionista anunciou que chamaria a polícia. “Gatos escaldados”, Ruth e eu apanhamos as malas e nos retiramos discretamente para o quarto.
Na manhã seguinte, renovados, seguimos ao restaurante da Universidade do Chile. Lá, aguardamos até encontrarmos dois estudantes brasileiros, a quem contamos nossa situação. Eles nos deram o endereço de uma associação criada para apoiar refugiados.
Na associação, a atendente pediu referências — precaução contra infiltrações de agentes da ditadura. Citamos nomes de conterrâneos do Ceará de quem tínhamos ouvido falar: Ângela e Paulo Lincoln. “São meus vizinhos”, disse ela, emocionada. Ao final do expediente, levou-nos até eles no bairro de Macul, para onde embarcamos num pequeno ônibus lotado, carinhosamente chamado de Guagua (bebê, em espanhol).
A chegada à casa de Ângela e Paulo Lincoln foi uma festa: abraços apertados, solidariedade sem barreiras, hospitalidade cearense. O reencontro de amigos transformou-se em símbolo da liberdade recém-conquistada.
A leveza de estar finalmente livres, as primeiras impressões do Chile e os passos para nos integrarmos à nova vida ficam para uma próxima historieta.
João de Paula,
De Maranguape
