Da Praia de Iracema a Jacarecanga: traço gostoso de uma tentação burguesa; Por Paulo Elpídio de Menezes Neto

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Praça Gustavo Barroso. No largo, cercado de residências, destaca-se o Liceu do Ceará.

Arqueologia estética de guardadas e dissimuladas lembranças

E as moças de Jacarecanga, não contam?

Pus-me sob suspeita e em estado de alerta ao referir-me à beleza da mulher cearense e eleger as graciosas criaturas de duas famílias que ornaram com o seu encanto a rua dos Pacajus, na praia de Iracema. Alguns protestos fizeram-se notar, percebi-os dissimulados em sorrisos contidos; outros, calaram-se por justa causa.

Claro, a rua dos Pacajus não guardava o monopólio da beleza a ponto de fixar padrões e modelos estéticos para as cearenses. Nem julgava poder valer-me do meu sentido de escolha e eleição para apontar as mulheres que coubessem nos requisitos que justificassem a sua graça e encanto femininos.

Convenhamos, outros bairros guardavam os seus tesouros sob a proteção de famílias muito distintas.

Jacarecanga, os bondes e os varões assinalados
Jacarecanga era um deles, e o Alagadiço, Benfica e a Aldeota, naquela cidade ainda provinciana, dominada pelos ares de uma burguesia urbana nascente, recolhiam em seus colégios de postura confessional as moças casadouras e, nas residências elegantes, as faziam crescer, educadas e cultas.

Residência da família Thomaz Pompeu

Jacarecanga já era quase um burgo, crescera e expandira-se em torno da praça Fernandes Vieira, hoje, Gustavo Barroso, em palacetes imponentes e prédios de época, versão ousada ”art nouveau”, mostra da prosperidade daquelas famílias e dos requintes da sua educação e dos seus aplicados vezes de cultura.

Thomaz Pompeu e os projetos que lhe deram projeção no campo da pesquisa histórica, os Morais Correia, o dr. Pedro Sampaio, médico insigne, Acrisio Moreira da Rocha, futuro prefeito, Stênio Gomes da Silva, vice-governador e governador do Estado foram personagens no cenário ambicioso, de uma acanhada província cercada de mar e de interiores longínquos.

Pedro Philomeno Gomes e o seu parque têxtil, a família Andrade Pontes, Stela e Djacir Menezes. O Colégio 15 de novembro e a Faculdade de Ciências Econômicas, compunham com o Liceu do Ceará, a instância de educação e cultura. As duas primeiras, privadas, fruto da iniciativa e da visão pedagógica de Djacir Menezes.

Cada um desses moradores exerceu função criadora, certa forma peculiar de pioneirismo, foram os instauradores de precedências, em cordial comandita — os colonizadores do lugar, fundadores, pioneiros e aliciadores das razões de progresso persistentemente buscadas.

O Liceu do Ceará

O Liceu do Ceará, o Instituto (asilo) do Bom Pastor para mães solteiras, o Corpo de Bombeiros e a Faculdade de Ciências Econômicas emprestavam ao lugar o ar respeitável de uma vizinhança socialmente estabelecida.

Oscar Pedreira, empresário de transportes coletivos, fincara moradia no bairro. O sr. Henrique Klein constituíra família numerosa na rua Agapito dos Santos: Roberto, general das merecidas estrelas, Maria Luis, Fernando, Luciano, Antonio Carlos. Janete, Marcelo e Rosa.

Em casa vizinha, Jáder de Carvalho, jornalista opiniático e escritor, poeta e romancista (autor do mais bem descrito panorama social sobre a sociedade fortalezense), e a esposa Margarida Sabóia, e os filhos, um deles, Cid, senador da república, criados todos e educados na combativa lide do jornalismo. [Referencia essencial: “Aldeota” e “Sua Majestado, o Juiz”]. A família Quezado, de tradição confirmada nas pelejas da justiça…

Memórias do Jacarecanga | Terra dos Casarões
Bonde saindo do Centro com alunos do Liceu do Ceará

Os bondes eram seus concorrentes naturais e mais antigos, até, do que os seus ônibus. Saiam da praça do Ferreira pela rua Guilherme Rocha, percorriam longo trecho, avançavam pela praça da Lagoinha. Uma variante, a linha Soares Moreno entrava pela rua Princesa Isabel até alcançar a rua São Paulo e fazer ponto final no Cemitério de São João Batista. O outro ramal corria pela Guilherme Rocha, deixava para trás a Secretaria de Educação, até chegar, ronceiro,à praça Fernandes Vieira.

Em tempo, os “bondes” assim eram chamados pelo povo, corruptela de “bond”, ligação em inglês, designação dada ao ticket que os passageiros recebiam do cobrador… Este tipo de transporte era identificado com “tramway” impronunciável em bom “cearensês”…

Na Jacarecanga, primeiro conjunto de apartamentos de inspiração “art nouveaux” em Fortaleza

O traçado fundador da “loura desposada de sol”
Neste mapa, o traçado de ruas em xadrez, característica dos projetos de urbanização desde Antônio José de Silva Paulet, em 1726, integrou-se às vias de acesso em demanda do centro urbano de Fortaleza. As correspondências transversais, paralelas, nascidas no litoral, buscavam o sertão, assim se dava a internalização para o sul da cidade em formação, onde nasceu o bairro da Água Fria ou Seis Bocas, dito Edson Queiroz.

É de notar-se que o crescimento de Fortaleza ocorreria, já nos seus começos, em direção ao nascente, tendência normal da expansão urbana, indo por impulso espontâneo ao encontro do nascimento do sol. No caso desta cidade, a foz do Rio Cocó e o paredão as dunas, a nordeste, seria como impecilio natural, de reconhecida dificuldade a contornar para os recursos da época. O desvio para o interior foi contingência incontornável para a ocupação dos novos espaços de bem sucedida conquista imobiliária.

Voltemos o nosso olhar, conduzido pelo tempo histórico, que já tarda, em busca das jovens em flor, em seus nichos delicados, no suave desabrochar das suas vidas. Pois ali estavam as meninas, moças anunciadas, pronunciadas em greis familiares bens constituídas e, sobretudo, cheias de graça e de serena beleza, que dos verdes anos guardaram a lembrança para a vida inteira.

As meninas, núbeis em flor
Filhas e netas de Pedro Sampaio, tornaram-se Meyer, Soares e Mourão Matos. As Morais Coreia, Nicinha e Luiza, primeiras-damas de segura presença política, fizeram-se Márcio e Távora. E os Philomeno Gomes, árvore frondosa de filhos, filhas, netas e bisnetas, mulheres de caráter e beleza, a exemplo das meninas Gentil e Fiuza.

Maria Luiza e Janette eram imagens postas em moldura de cabeceira, ruivas, loiras, por trás de olhares discretos e risonhos.

Beatriz, Sarah, Tida e Julhinha completam-se em estreita correspondência, descendência de uma estirpe vitruviana de adequadas proporções e perfeitas perspectivas.

A invenção dos bairros: Alagadiço, Benfica, Aldeota e praia de Iracema
Pelos anos 40, no final de uma guerra inclemente, distante, da qual nos alcançavam os ruídos da estática e do do “broadcast” nas transmissões da BBC de Londres, com as notícias dos avanços e recuos das tropas beligerantes, Fortaleza organizava-se em torno de um eixo urbano central, marcado pela avenida Duque de Caxias, dom Manuel, avenida Tristão Gonçalves e dr. João Moreira.

Comércio, serviços públicos, pontos de ônibus e bondes, escritórios e consultórios concentravam-se neste perímetro. Para além desse quadrado ficavam os bairros e subúrbios que se foram constituindo com as populações expulsas pela nova urbanização, em decorrência do crescimento do afluxo dirigido à Capital e da valorização crescente dos terrenos do perímetro central.

Não cabe aqui a análise desse processo de urbanização. Não foi desses desvios cultos que imaginei ocupar-me, com índole de cronista. Que os urbanistas dele possam tratar com mais propriedade.

A urbanização de um arruado disperso
Em Fortaleza, por questões não analisadas com rigor, o prestígio social dos bairros, fora a periferia urbana pobre, seguiu um movimento cíclico, dentro dos limites urbanos próximos. Jacarecanga, pela proximidade do perímetro central, cresceu como bairro de acentuadas preferências burguesas, no qual cresceram por notória concentração a riqueza e o prestígio social e político de algumas famílias.

O Alagadiço acolheu proprietários, com casarios, terras produtivas e pomares, providos, na grande maioria, por famílias de origem rural, notadas pelos hábitos e preferências visíveis. O Benfica fez-se casa e morada de personagens mais sofisticados, negociantes e gente abastada pelas artes do comércio — a categorização de “empresário” não fora, ainda cunhada. Os novos donos do lugar aplicavam a abastança conquistada no requinte de edificações criadas por arquitetos do Sul do país.

A praça da Gentilandia, conotação das famílias que foram se instalando nas cercanias, chamadas “ Prado”, por onde passavam de galope os cavalos de corrida, marcou como sinal de posse a chegada dos novos senhores.

O desembarque da Universidade

Reitoria da UFC
Reitoria da UFC, ícone arquitetônico do Benfica/ Foto: Divulgação

Desses bens abandonados e do orgulho das famílias adjacentes, as imensas glebas do Benfica e os palacetes cederam lugar à Universidade, matriz altiva e movimentada de grandes mudanças e provedora do “Corredor Cultural” de Fortaleza, ao longo da Avenida da Universidade/Reitor Antônio Martins Filho.

Os profissionais liberais, médicos e advogados de nomeada e os enriquecidos pelas atividades afins, fixaram-se na Aldeota e deste reduto resistiram à onda das transformações sociais e econômicas mais significativas, a que tiveram de acostumar-se.

Hoje, esta geografia do prestígio e da riqueza incorporou novos assentamentos e ganhou outros espaços imobiliários.

A sedução da mercancia
Não há como fugir, a estas alturas de uma promissora conversa, a uma visão identitária que se impõe à consideração de quem estiver a ler estas proposições. O cearense traz, no íntimo da sua vocação para as coisas e atividades úteis, engenhosa inclinação para a mercancia, é da sua índole, própria tentar a sorte é as habilidades para o comércio. Luiz Fernando Raposo Fontenelle, antropólogo de passagem pela cidade, ele próprio nascido em meio a tradições originárias sabidas, por parte dos Fontenelle, afirmava que qualquer atividade no Ceará transforma-se em comércio. Dentistas, médicos, advogados, funcionários públicos, a imensa gama dos profissionais liberais terminam por encontrar o seu destino — de comerciantes e empresários — ricos.

A arqueologia das nossas lembranças perdidas
Da Aldeota de outros tempos, ficou a imagem de um sítio arqueológico do que foi no passado, aldeia reservada de uma burguesia florescente em seus bangalôs dos quais sobrevivem alguns prédios ocupados pela prosaica atividade de comércio de móveis e farmácias, escritórios e consultórios…

Condomínios, “resorts” e conjuntos residenciais exclusivos são o endereço dos novos cearenses, saídos desta modernidade poderosa — senhores da sua própria carta de cidadania.

Paulo Elpídio de Menezes Neto é articulista do Focus, cientista político, membro da Academia Brasileira de Educação (Rio de Janeiro), ex-reitor da UFC, ex-secretário nacional da Educação superior do MEC, ex-secretário de Educação do Ceará.

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