
Houve um tempo em que Fortaleza figurava entre as cidades mais bem avaliadas do país em transporte coletivo. Esse padrão não surgiu por acaso. Foi fruto de planejamento, ousadia e um raro alinhamento entre técnica e vontade política.
Em 1992, na gestão de Juracy Magalhães, a capital implantou o Sistema Integrado de Transporte de Fortaleza (SITFOR). O modelo foi revolucionário:
• redesenhou linhas;
• criou rotas interbairros sem a necessidade de passar pelo Centro;
• organizou sete terminais de integração;
• unificou a tarifa.
O resultado foi imediato: deslocamentos mais rápidos, custo menor para o usuário e aprovação recorde. Pesquisas da época mostravam o transporte público como o serviço municipal mais bem avaliado. Juraci e seu sucessor, Antônio Cambraia, colheram dividendos políticos claros dessa eficiência.
A partir de 2005, Luizianne Lins aperfeiçoou o sistema. Retirou impostos e tributos que encareciam a passagem, negociou com o então governador Cid Gomes a redução do ICMS sobre o diesel e criou o Domingo Social, que permitia lazer às famílias com tarifa reduzida. O bilhete de Fortaleza chegou a ser o mais barato do Brasil. O transporte continuou liderando a aprovação popular e ajudou a impulsionar o nome de Elmano de Freitas, até então um candidato pouco conhecido.
Ao entregar a prefeitura, Luizianne deixou um sistema licitado, com 1.900 ônibus, idade média de apenas 3,5 anos e crescente frota com ar-condicionado. Fortaleza tinha pioneirismo em tecnologia de bilhetagem: pagamento eletrônico, cartão recarregável e evoluções constantes — hoje com QR code, Pix e até biometria facial para controlar gratuidades.
O desmonte silencioso
Foi a partir da gestão de Roberto Cláudio que as engrenagens começaram a ranger. A prefeitura resolveu não cumprir cláusulas contratuais de reajuste tarifário previstas para manter o equilíbrio econômico-financeiro das empresas operadoras — um mecanismo essencial em qualquer concessão. Com a receita defasada e sem previsibilidade, as companhias perderam capacidade de renovar frota e investir. A crise se agravou com a pandemia: das 14 empresas que formavam os cinco consórcios vencedores da licitação de 2011, cinco faliram. Hoje, restam apenas nove operadoras, com frota reduzida a cerca de 1.350 ônibus e idade média de oito anos — mais que o dobro da média anterior. Uma delas, a Siará Grande, está em recuperação judicial.
O prejuízo acumulado por descumprimento contratual já ultrapassa R$ 500 milhões, valor que as empresas cobram na Justiça. São as mesmas companhias que, sob Juracy, Cambraia e Luizianne, mantinham um serviço considerado referência nacional. Culpar exclusivamente o setor privado agora soa cômodo — e simplista. Para as empresas, quanto mais nova a frota e melhor o serviço, maior o patrimônio e a previsibilidade do negócio. Não há lógica em sabotar o próprio ativo.
O retrocesso na mobilidade
O desmonte não parou aí. A cidade optou por estimular transporte individual, sobretudo motos e vans clandestinas, em vez de fortalecer o coletivo. O resultado está nas ruas: congestionamentos crônicos e tragédia social refletida no IJF, superlotado de vítimas de acidentes de moto. Fortaleza nadou contra a corrente mundial — enquanto cidades de referência investem em transporte público qualificado e países discutem tarifa zero com base em estudos que mostram seu enorme impacto social e econômico, aqui preferimos incentivar o improviso.
Custo do erro
Reconstruir um sistema de transporte urbano é tarefa cara e lenta. Frota envelhecida, contratos fragilizados e confiança quebrada afastam novos investidores. O que era um ativo urbano competitivo — essencial para reduzir desigualdades, dinamizar a economia e melhorar a qualidade de vida — foi convertido em problema estrutural.
Fortaleza, que já teve um dos sistemas mais elogiados do Brasil, hoje vive um caos anunciado. E pagará caro para recuperar o tempo e as decisões perdidas. Não é tarde demais para mudar, mas exige coragem política: respeitar contratos, financiar adequadamente o coletivo, e inverter a lógica que priorizou motos e improviso sobre planejamento e serviço público de qualidade.