Antes de começar, peço um pequeno estoque de paciência ao/à leitor/a. É que que preciso delimitar aquilo que considero “polêmica” e, depois disso, dar as razões pelas quais o episódio em torno do citado Frei Gilson no título passa longe de ser uma.
Por “polêmica” entendo, exatamente, aquilo que a semióloga francesa Ruth Amossy entende como uma “gestão verbal de um conflito realizada sob o modo de dissensão” e que cumpre a função de desdobrar debates inflamados no espaço público sobre questões controversas, mas que são de interesse geral. Logo, a autora conclui que a polêmica, assim definida, cumpre uma função singular dentro da democracia: ela desperta discussões verbais a partir de dissensos, que podem ser insolúveis, mas se dão ao debate. A discursividade polêmica exige uma racionalidade que é pública. Põe em discussão aquilo que é “alvo” da retórica polemista.
As ideias da autora sobre o assunto estão reunidas na obra “Apologia da polêmica”, publicada no Brasil em 2017. Vale a pena a leitura.
Grato por sua paciência, retomo o assunto do texto.
Desde o último final de semana uma série de matérias jornalísticas, moções de apoio e comentários desvirtuados nas redes sociais de políticos de extrema-direita e até de uma suposta esquerda dão conta de um suposto “ataque” ou mesmo de uma “perseguição” da “esquerda” ou dos “progressistas” ou da “militância petista” ao Frei Gilson.
Uma rápida consulta no google com as palavras “frei*gilson” e o que você encontrará é uma série de matérias em que se lê, em linhas gerais, o seguinte: o sacerdote tem milhões de seguidores nas redes sociais e plataformas; o sacerdote reúne milhões de brasileiros em lives realizadas nas madrugadas; o sacerdote recebeu apoio de políticos, tais como Jair Bolsonaro, Nikolas Ferreira e André Janones; o sacerdote foi atacado pela esquerda e merece pedido de desculpas; o sacerdote é perseguido por rezar nas madrugadas. Deixo o restante do resultado para sua própria pesquisa.
Quando se passa a considerar a discursividade de políticos que resolveram se agarrar ao fato para mais uma fatura político-religiosa, vemos o seguinte:
“A religião transcende ideologias e partidos políticos. Criticar a fé ou os religiosos, de qualquer crença, é um desvio do que realmente importa: a busca pela união, pelo amor e pela paz” (André Fufuca, ministro de Lula).
“Para quem é cristão, isso não é nada mais do que algo natural, você ser atacado por seguir a Cristo (…) Quão deteriorada e podre tem que ser a alma de uma pessoa para ficar reclamando de pessoas que estão rezando às 4h da manhã” (Nikolas Ferreira, deputado federal).
“Frei Gilson é um fenômeno em oração” e, por isso, “vem sendo atacado pela esquerda”. “A fé cristã nunca se curvou à perseguição e não será diferente agora. Minha solidariedade a ele e a todos que defendem os valores de Deus e da família” (Jair Bolsonaro).
“O cancelamento de Frei Gilson não começou por um escândalo, por um crime ou por uma atitude condenável. Começou porque ele colocou milhões de pessoas para rezar. Parece absurdo, mas esse foi o estopim. No fundo, o que realmente incomoda é ver tanta gente acordando às quatro da manhã para uma live de oração. E aí surge a pergunta inevitável: quem é que se irrita tanto com o fato de pessoas rezarem?” (Madeleine Lackzo, intelectual de direita).
Tal como nessas e em outras postagens de políticos, também nos enquadramentos feitos pela imprensa em diversas matérias, a razão de ser da evidência dada ao religioso nesta semana passa longe do factual: não, a evidência não se deve às milhares de pessoas que o seguem nas redes e plataformas e nem aos que assistem suas lives diárias; não, sua evidência também não se deve ao fato de reunir tanta gente em torno de si; não, também não há incômodo algum com suas rezas, mesmo que seja uma daquelas “eleitorais” promovidas em 2022.
O factual, o verdadeiro, o polêmico no verdadeiro sentido da palavra foi o momento de sua pregação, em 08 de março, em que nos dá uma mostra do que é o pensamento católico conservador acerca dos papéis de homem e de mulher, que estariam biblicamente assentados. É o teor da “guerra dos sexos”, que o frei pensa haver apenas nas “ideologias”, mas que está tão bem legitimada “reveladamente” na sua crença. Tão bem está legitimada, essa guerra, em sua crença, que enxerga e crê na liderança nata e divina do homem, e no erro da mulher de “querer mais”.
O frade, como frade, pode e deve crer assim. Sua fé, a tradição católica, exige isso dele. Daí que tal declaração não seja, para o frade e seus seguidores/fiéis, “polêmica”, uma vez que não se presta à discussão. Apenas se crê.
O lamentável é como jornalistas trataram a questão, enquadrando o frade como um perseguido por ser um “fenômeno das redes”.
“Polêmico”, mesmo, vem sendo o produto chamado “texto jornalístico” que se lê por aí. Precisamos discuti-lo, para o bem da democracia.
