
“Torna-te aquilo que és.” — Friedrich Nietzsche
Lindomar Castilho morreu no último sábado, aos 85 anos. Mas o assassinato de Eliane de Grammont não morreu com ele, nem ficou restrito à noite em que os tiros interromperam sua voz. O crime atravessou o tempo e persistiu nos seus efeitos — sobretudo na vida da filha, que atravessou a infância sem o colo materno.
Quando ela afirma que, “ao matar sua mãe, o pai também morreu em vida”, não recorre a metáfora. Nomeia um fato: a morte moral de quem, ao destruir uma vida, rompeu qualquer pertencimento humano.
Crescer sem mãe não é apenas crescer com tristeza. É conviver com lacunas permanentes e perguntas sem resposta. É atravessar a vida imaginando presenças que deveriam existir e nunca existiram. A violência não retirou apenas uma mulher do mundo — quebrou uma relação inteira antes mesmo que pudesse criar raízes.
Há ainda outra morte lenta, menos visível, mas igualmente consequente do ato brutal: a da voz. Lindomar Castilho recebeu uma dádiva — uma voz marcante, reconhecível, talento inegável. Deus — ou o acaso — lhe concedeu isso. Foi intérprete e teve grandeza artística. Mas há talentos que engrandecem quem os recebe, e há talentos que apenas expõem, com maior nitidez, a falência moral de quem não soube sustentá-los.
No cárcere, compôs Muralhas da Solidão, canção que descreve a angústia do confinamento, a rotina esmagadora e as noites povoadas por fantasmas coloridos. Na letra, invoca a mãe, chamando-a de santa. O gesto é revelador: ao recorrer à imagem materna para humanizar a própria dor, ignora deliberadamente o fato de ter eliminado, a tiros, a mãe da filha. Não se trata de contradição estética, mas de uma dissociação moral evidente — a tentativa de reorganizar a consciência pela linguagem depois de ter rompido, de forma irreversível, o limite fundamental da vida.
Cumpriu parte de uma sentença branda de 12 anos e voltou à liberdade. Nunca mais foi o mesmo. A pena não reparou a ausência. O que permaneceu não foi a glória de uma voz, mas a memória de um gesto que a desautorizou para sempre. Há atos que não pedem compreensão — exigem ser nomeados pelo que são: covardia sem atenuantes.
A Bíblia registra: “A voz do sangue do teu irmão clama da terra” (Gênesis 4:10). Há crimes que continuam falando mesmo quando tudo tenta se calar. Não pedem vingança. Não suplicam absolvição. Exigem lucidez. O perdão, se existe, não é coletivo nem obrigatório. Pertence apenas a quem perdeu — e, aparentemente, não foi concedido.
A filha disse o essencial: “O homem que mata também morre”. O resto é consequência. Lindomar Castilho foi reduzido ao seu ato — um assassino.
Esta história, talvez um dia, encontre voz em O Anjo Leonardo — o perigo da relação.







