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O frangão. Por Angela Barros Leal

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Por Angela Barros Leal
Articulista do Focus

Tratava-se de um frango de bom tamanho, “um frangão”, na palavra do rapaz do frigorífico, vendendo seu peixe por sobre o balcão do supermercado. Era produto resultante do farto tratamento oferecido por uma marca famosa, especializada em “frangões” como aquele, informara. Daria com certeza para o almoço de segunda-feira, para as três pessoas de uma família que não costumava comer muito.

O frangão foi encaminhado à cozinha, para as mãos da cozinheira. Foi temperado, untado, depositado em forma de alumínio, acima das grelhas do forno quente, e lá se deixou repousar até que a pele dourasse em tons do mais apetitoso bronze.

Assim se viu servido na bandeja, sobre um leito de alfaces, peito estufado de General, pernas modestamente cruzadas onde seriam os tornozelos, asas posicionadas ao longo do corpo, qual um bravo combatente abatido em confronto desigual. Isso no primeiro dia.

Na terça-feira o frangão retornou à mesa. Vinha ferido pelo assalto dos garfos e facas do dia anterior. Faltava-lhe a asa esquerda, a coxa direita, algo da carne escura, consumidas pelos donos da casa. O peito exibia a ausência de uma parte da pele e da carne branca, devoradas pelo filho mais novo, o único a repartir o almoço com os pais. Entretanto, mantinha-se o frangão na mesma postura sobre as folhas de alface, já um tantinho emurchecidas.

Os donos da casa se depararam com o frangão de volta no almoço da quarta-feira. O leito de alface fora substituído por meia dúzia de rodelas de cebolas cruas e tomates. O restante da ave não alterara em nada sua posição sobre a bandeja – exceto pela falta de mais pele, escavada pelo menino no dia anterior, por um rombo aprofundado no peito, como se resultasse da explosão de um projétil, pela ausência da coxa restante, arrancada a mão pelo dono da casa, e pela falta sentida de sua segunda asa.

Mutilado, não havia como negar que o frangão ganhara um certo aspecto de morcego.

O marido reclamou do retorno da ave, de volta no terceiro dia: mas como é que pode, o que é isso, assim não dá, etc. A dona da casa baixou a voz: tinha sido difícil conseguir uma cozinheira. Ruim com ela, pior sem ela. Nenhum dos dois tinha tempo ou gosto para orientar sobre o que fazer para o almoço. Que aproveitasse o que estava na geladeira tinha sido a palavra de ordem, diariamente gritada da sala para a cozinha, antes do bater da porta.

Da parte da cozinheira, ela vira que sobrara muita carne branca do frangão, a ser aproveitada. Não enxergava motivo para não voltar a servi-lo, nem para perder tempo buscando maneiras de rearranjar os remanescentes dele.

Na quinta-feira a cozinheira perdeu o ônibus. Desembarcou ofegante no serviço, quase na hora do almoço, e nem lembrou da queixa da véspera, feita pelo patrão.

E lá retornava o frangão à mesa, em sua imutável posição sobre a bandeja, reduzido a algo de impossível autópsia, abatido como um soldado em sua trincheira. Carcaça à mostra, permitia estudos de sua anatomia. Fragmentos de carne e de pele encontravam-se esticados para fora, em franjas ressecadas pela submissão ao frio da geladeira. O grande vazio de onde tinham sido retirados os miúdos, antes mesmo da compra, abria-se em abismo aos olhos do casal.

O menino tinha improvisado um sanduiche mais cedo. Não fez questão de comparecer ao almoço.

Dessa vez a dona da casa reclamou. Que não dava certo desse jeito, que não era assim, que a cozinheira precisava se empenhar mais no seu trabalho, etc. etc. A cozinheira baixou a cabeça a caminho do gancho atrás da porta, onde pendurava sua bolsa, e pediu as contas. Ia procurar outra patroa, mais perto de onde morava, e que trouxesse menos problemas.

Na sexta-feira, a família almoçou um fricassê de frango, preparado às pressas pela dona da casa, que tratara de desfiar os restos mortais da ave, e misturá-los com uma lata de milho verde, uma de creme de leite, mais um copo de requeijão. Apesar do seu desconhecimento quanto aos mistérios da Ciência, a patroa obedecia à consagrada Lei de Lavoisier: “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.

Especialmente um frangão como aquele.

Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus.jor.

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