
A abordagem seguia o mesmo processo, em todas as residências onde o homem batia à porta. Na casa do meu pai foi igual. A entrega de uma carta de apresentação de alguém conhecido, o aspecto profissional de quem se apresentava, de paletó e gravata, os óculos de armação escura, o cabelo preto elegantemente embranquecendo, tendo em mãos uma pasta surrada, a insinuar o porte de preciosos documentos, tudo isso dava a abertura para a proposta ao dono da casa.
Meu pai, que suspeito ter amado com igual paixão a História e a Medicina, deu entrada ao homem abrindo as portas, o coração e a carteira. Não tinha ideia da folha corrida do visitante, que se dizia historiador, dono de conversa fluente, em sotaque sulista, chegando para apresentar um projeto que visava resgatar a memória da ação católica no Ceará. Claro que, para existir, o projeto carecia do apoio financeiro do interlocutor.
Era difícil recusar uma oferta que trazia de volta a infância do meu pai, tão religioso, de comunhão semanal, ex-aluno interno em um colégio tradicional do Estado, conhecedor profundo do tema que estrearia a coleção de livros prevista pelo ambicioso projeto, ao qual ele aderiu de corpo e alma.
Cedeu fotos, imagens antigas, documentos, dinheiro, papéis de toda ordem, endossando o trabalho. Entregou itens substanciais do seu acervo nas mãos do homem, que levou também o compromisso da aquisição prévia, por parte de meu pai, e de outros abordados, de um pacote da primeira fornada do livro a ser escrito.
Poque meu pai não foi o único a ser conquistado pela conversa do visitante. Outras famílias foram igualmente procuradas, e a cada aceitação mais e mais fotos e documentos deixavam os álbuns e envelopes caseiros, passando às mãos do homem, que se valia disso para conquistar mais e mais adeptos à sua causa.
Caso existisse, na época, um sistema de acesso amplo a informações, com as facilidades de que dispomos hoje, meu pai teria consultado o nome do homem – ou pedido a alguém para assim fazer – e descoberto quem ele era: um estelionatário, conhecido da polícia, não só no Ceará como em outros estados, uma pessoa que havia sido condenada e presa por golpes no mercado, assumindo profissões fictícias para usufruir de vantagens indevidas.
“Seu pai foi extorquido por ele” – me disse a pessoa de quem ouvi a história, a qual eu desconhecia de todo. Achei forte o uso do verbo, extorquir, mas o emprego era correto: conseguir algo usando ameaça, artimanha ou força. A ação contra meu pai se enquadrava na artimanha, na trapaça, no embuste. Embarafustara-se o homem no terreno sagrado da biblioteca dele, escudado por uma afirmativa falsa. Assim conseguira um endosso de que precisava para prosseguir desfalcando famílias locais de recursos financeiros, e de acervos de memória,
Não entendi, de pronto, porque o tal homem resolvera se inventar como historiador, havendo tantas outras formas mais efetivas para extrair dinheiro alheio, como fizera ele nas fraudes anteriores, assumindo profissões mais conhecidas e envolvendo a movimentação de bens materiais de grande porte.
Depois, fui concluindo que devia ser mais simples e menos ostensivo para ele lidar com historiadores, pesquisadores, intelectuais, uma categoria especial de pessoas de boa-fé, gente como meu pai, que tirava por si a medida dos outros. Jamais passaria pela cabeça dele que existisse sobre a Terra um indivíduo capaz de usar tal artifício, apropriando-se de material antigo, de valor sentimental incalculável, como um meio pouco honesto de ganhar dinheiro.
Mas todos souberam quando o homem foi encontrado morto, em uma rua pouco transitada, vítima de um atropelamento que resultou em traumatismo craniano. Talvez um mero acidente, talvez os golpes do passado agendando um reencontro com ele.
Lamento a perda de uma vida humana. Mas não posso deixar de pensar em como deve ter sido a reação de meu pai, ao saber que muito de seu acervo jamais ia ser recuperado – como de fato não foi. Quem me contou o fato garante que, até hoje, nada reapareceu do material que aquele vendedor de histórias recolheu das famílias. Uma pena.

Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus Poder desde 2021. Sócia efetiva do Instituto do Ceará.






