Os “meus cafés” literários na Rive Gauche, Paris; Por Paulo Elpídio de M.N.

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Certas afinidades eletivas impõem-se quanto a hábitos contraídos em uma cidade escolhida para estudar ou trabalhar. Se for Paris o valhacouto de passagens suspeitas e de intenções vulgares, tanto mais relevantes essas demoras serão. Fora, naturalmente, os pecados veniais que desses não há quem deles cuide com autoridade respeitada.

No caso de muitos brasileiros, ali estávamos por justa causa e fortes interesses dissimilados. Para dar asas ao espírito, diria Lustosa da Costa. Ou pela escalada impositiva, discreta e ameaçadora da arapongagem que havia tomado conta das nossas consciências, no Brasil. Havia os que se mandavam para Paris com grande ansiedade. Exilado ama, de um modo geral, Paris, perdidamente (não veem o Chico, quantas revoluções teria feito no “Outre-mer”, se os surtos de insurreição civil fossem mais frequentes e o Brasil não parecesse assim tão distante?).

Não foi este o meu caso, embora viesse sentir as consequências de uma estada tão prolongada e suspeita, em tempos de guerras e subversão verbal, naquela quadra da nossa vidinha de brasileiros foragidos.

Somados os “séjours” “au bord de la Seine” e em Tours, conforme registro dos meus passaportes, emudecidos com tantas peraltices a calar, poderia eu garantir sem medo de estar a mentir que por ali espreguicei-me, estudei, trabalhei e bebi todos os “bordeaux” a que tinha direito por força de afinidades eletivas confessadas com a Lutecia.

Entreguei-me com toda a força dos meus verdes anos, por mais de quatro anos, “les comptes faites”, amparado pela doce paciência e conivência da Zuleide e da Martinha àquele singular desterro no Quartier Latin.

Não estou contabilizando, hão de perceber os leitores perspicazes, as viagens de turismo ou a serviço, em missões oficiais de breve estada e permanência, pois estas lançarei em outra conta-corrente das obrigações incontornáveis, parte do sacrifício das nossas escolhas. E para que vejam os céticos quão duro pode ser o exílio em terras estranhas ou a privação a que se submetem os turistas po terras alheias.

Em defesa própria, devo deixar claro, entretanto, que nunca me tomei por turista. Na mesma medida de julgamento, nunca me identifiquei como bibliófilo. Assim como José Míndlin, tive-me como “viajante” comissionado e bibliopata auto-medicado…

Pintura do Cafe de Flore, na Boulevard Saint-Germain, esquina com a rue Saint Benoit, Paris. Fica a alguns passos do Les Deux Magots e da igreja de Saint-Germain-des-Prés.

Nomeio em confissão espontânea esses lugares lugares de descanço e distração, onde me punha a ler com sofreguidão o “Le Monde” de cada dia e, em grupo de amigos, em singular catarse, estudar e repassar obrigações de cursos e a escrever os textos requeridos na rotina da Universidade.

Tudo por uma xícara de “express” ou por uma “Stela Artois”, a melhor invenção da Bélgica desde as batatas fritas. Sempre imaginei que os cafés franceses, cadeiras à calçada, fossem uma empresa pública-estatal, sem intenção de lucro, existem para servir os intelectuais e os passageiros eventuais desta cidade atemporal. É o que se poderia chamar avisadamente de um entreposto de falácias, em qualquer idioma civilizado.

Onde mais, senão na França, iria descobrir que a indústria do tabaco e seus derivados constituíam um empreendimento estatal? E que as padarias e estabelecimentos do gênero deveriam seguir a receita para fazer “croissants” e “baguettes”e “ficelles” – fixadas em ato do poder executivo? E que um jornal, da expressão internacional do “Le Monde”, organizado em cooperativa, pertencesse aos que nele trabalhavam, diretores, redatores e gráficos?

Os cafés da “Rive-Gauche” eram mais frequentados por situarem-se no Quartier Latin, espaço de vida e de subsistência, à proximidade dos cursos e dos espaços nos quais morávamos.

Sorbonne, a primeira universidade da França, em Paris.

Frequentador desses lugares, em grupo de estudantes, nas beiradas da Sorbonne e da Faculté de Droit, morei com Zuleide e Martinha, à distância dessa agitação, em Vincennes e Porte de Saint-Cloud, em pequenos apartamentos a três andares do térreo, sem elevador…

Em viagens de longa permanência, levava por hábito e precaução, um par de armadores. Instalei-os em uma “lucerne” de Porte de Saint-Cloud e lá pus-me a balançar, em uma rede de longas varandas, as minhas inquietações e vagas aspirações, em tempos tranquilos como aqueles, antes das borrascas que estavam para vir, anos depois, em maio de 1968.

Os “bistrots”, que ainda podiam ser chamados de “zinc” (de zinco eram cobertos os seus balcões) apresentavam-se para gente como eu, bolsista de baixa extração financeira, de múltipla serventia, restaurante, café “snack bar”, espaço intelectual, biblioteca e reduto livre de opinião que livres eram as nossas pretensões, então — menos os francos franceses “de poche” para as necessidades habituais de subsistência mínima.

LES DEUX MAGOTS PARIS 50x70cm textura impasto espátula pintura a óleo por Mona Edulesco
Le Deux Magot

O “bistrot” é uma criação da engenhosidade boêmia francesa, mas como lugar de catarse intelectual e afinidades consensuais eletivas ou discrepantes tem suas origens em Viena e na Berlim de outros tempos, espremida entre duas guerras e animada pela modernidade dos tempos anunciados.

Em Paris, nos arruados do Quartier Latin e nos “faubourgs” da Rive Droite, este o habitáculo de uma brilhante e abonada “bourgeoisie conquérante”, na visão de Charles Morazé [“Le bourgeois conquérants”, Éditions Armani Colin, Paris, 1957], os “cafés littéraires” assumiram a “fácies” de “petites assemblées” da “inteligência” rica de bens e de boas reservas de conservadorismo.

Nesta geografia política, o Sena traçava os limites, destes territórios, da Paris de velhos monarquistas e dos “boulevards” dos monastérios, dos “scriptorium” dos copistas e da universidade, na Rive Gauche…

Umberto Eco reproduz em “Cemitério de Praga” a topografia destes lugares, dos quais se tornaram a sua espinha dorsal o boulevard Saint-Germaine, a rue des Écoles e as ruelas em torno da igreja de Saint-Séverin. Montparnasse com os seus “bistros” acompanharia esse surto intelectual e boêmio.

Saindo do cruzamento do boulevard com a rue Vavin, ali se fixou, fez morada e ponto uma população vadia e promissora de escritores e poetas.

Gertrude Stein nomearia essa turba de “géneration perdue”, uma população nômade de escritores americanos e os escapados da guerra civil espanhola, dos bolcheviques de Lênin e Trotski e os fugitivos da onda nazista que dominaria a Europa por quase quinze anos.

Fugia-se de qualquer coisa ou de amargo sentimento, das perdas e das ambições abandonadas — por Paris.

Os escritores que ganhariam a fama e os que se perdiam na ausência de talento e de pretensiosas intenções, passavam por esses “gabinetes” de análise de ocasião e esperavam por alguém que os confundissem com pintores ou poetas celebrados — e lhe pagassem “une fine” ou um “bâlon de rouge”.

Paulo Elpídio e seu amigo, o jornalista Lustosa da Costa, confabulando em um banco do Jardin des Tuileries, em Paris.

No La Coupole, dei-me conta estar sentado ao lado Ionesco; não lhe dei confiança. Mortifiquei-o com a minha indiferença. Sartre, vencido pelos anos, saía do Les Deux Magots, amparado por uma das suas brilhantes assistentes, bonita e solicita. Foi ali mesmo, no bar do Le Dôme que Ilya Ehrenburg levou um tapa de André Breton por não o ter convidado para um Congresso Internacional de Escritores, promovido pela URSS… 0800, com verbas do Kominform…

Estivesse no cenário de “Midnight in Paris”, de Wood Allen, na pele de Gil Pender, [Owen Wilson], o jovem escritor sem inspiração, a mim teriam ocorrido os mesmos impulsos que o levaram a Gabrielle [Lea Seydoux], a jovem vendedora de LPs usados e àquela “grande finale”, os dois sob a chuva a caminhar sobre a Pont Neuf…

Naquela noite de um sonho curto demais para ser verdade, Gill Pender percorre todos os “zincs” de Montparnasse e de la Butte de Montmartre, do La Coupole ao Lapin Agile…

Meus “cafés littéraires” parisienses, descobertos por desejo manifesto e por confessada necessidade, longe das imposições de uma boêmia bem remunerada, atendia às nossas perdidas iniciações em um mundo totalmente novo, mesmo para pessoas jovens como nós éramos então.

À Montparnasse: : Le Select, Le Dôme, La Coupole, La Closerie de Lilas.

Au Quartier Latin: Brasserie Lipp, Brasserie Le Balzar, Le Sorbonne, Les Deux Magots e Café de Flore, Le Départ de Paris e Le Saint-Séverin.

Aux Champs Elysées: Le George V e Le Fouquet

Paulo Elpídio de Menezes Neto é articulista do Focus, cientista político, membro da Academia Brasileira de Educação (Rio de Janeiro), ex-reitor da UFC, ex-secretário nacional da Educação superior do MEC, ex-secretário de Educação do Ceará.

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