
A Reforma Tributária avança no Brasil como uma das mudanças mais profundas do modelo fiscal desde a Constituição de 1988. Embora seus efeitos se estendam por todo o território nacional, é nos municípios — e, em particular, nos municípios cearenses — que a transição exigirá maior capacidade de adaptação, planejamento e reorganização institucional. O Ceará, reconhecido pela maturidade de sua gestão fiscal e pela forte interação entre Estado e prefeituras, entra neste novo ciclo diante de uma oportunidade: transformar um cenário de incertezas em um projeto de fortalecimento da autonomia municipal e de modernização administrativa.
O primeiro imperativo dessa transição é compreender que a reforma não se limita a alterar a forma de arrecadar, mas redefine a própria lógica de gestão pública. A criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) desloca o eixo da tributação sobre o consumo, modifica parâmetros históricos de partilha, redefine incentivos e exige atualização de bases territoriais e econômicas. Municípios que não iniciarem esse movimento desde já enfrentarão riscos permanentes de perda relativa de arrecadação. Em contrapartida, aqueles que se prepararem terão condições de ampliar receitas próprias, qualificar o planejamento urbano e econômico e consolidar instrumentos modernos de governança fiscal.
Nesse contexto, a modernização cadastral assume papel central — e, para o Ceará, torna-se particularmente estratégica. A adesão ao Cadastro Imobiliário Brasileiro representa uma oportunidade concreta de corrigir distorções históricas no Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), identificar áreas não declaradas e integrar informações territoriais hoje dispersas. Trata-se não apenas de ampliar a arrecadação, mas de promover justiça fiscal, precisão urbana e maior capacidade de planejamento. Municípios que atualizam seus cadastros passam a operar com ferramentas que elevam a eficiência do gasto público, orientam investimentos e fortalecem a política urbana. Em um estado de grande diversidade territorial como o Ceará, essa medida pode reduzir desigualdades internas e estruturar políticas públicas mais alinhadas às realidades locais.
O fortalecimento da fiscalização, especialmente do Imposto Sobre Serviços (ISS), também ganha centralidade. O desempenho desse tributo influenciará diretamente o cálculo que definirá a participação municipal no IBS, o que significa que a eficiência arrecadatória atual produzirá efeitos pelos próximos cinquenta anos. Municípios cearenses precisam investir em inteligência fiscal, cruzamento de dados, regularização de prestadores de serviços e qualificação das equipes de auditoria. Não se trata de pressionar o contribuinte, mas de assegurar que a economia real seja adequadamente captada pelo sistema tributário. Em cidades dependentes do setor de serviços, do comércio e do turismo — realidade de muitos municípios do litoral e do interior —, essa agenda será decisiva para a preservação de receitas futuras.
Outro eixo indispensável da preparação é o conhecimento aprofundado da economia local. Com a tributação orientada ao destino, passam a importar o consumo final e a dinâmica produtiva do território. Os municípios precisarão mapear setores intensivos em consumo, operações não geradoras de crédito e atividades econômicas que impactam a repartição do IBS. Esse diagnóstico permitirá ajustar políticas urbanas, fomentar o desenvolvimento de acordo com vocações regionais e qualificar o diálogo com o setor privado. No Ceará, onde coexistem polos industriais consolidados, cadeias de comércio e serviços e um crescente dinamismo tecnológico, esse mapeamento é fundamental para orientar investimentos de longo prazo.
A transição também exigirá diálogo transparente com empresas instaladas no território, especialmente aquelas historicamente beneficiadas por incentivos fiscais estaduais. Em 2024, as renúncias de receitas no Ceará superaram R$ 4 bilhões e, em 2025, ultrapassam R$ 5 bilhões, contribuindo para a atração e permanência de empresas dos setores industrial e comercial. Embora expressivo, esse montante deve ser analisado em perspectiva. Estudo do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV/Ibre) indica que o Ceará concede 14,4% de sua receita total em gastos tributários — percentual inferior à média nacional e significativamente menor do que o observado em estados como o Amazonas, que destina 58,0% de sua receita total a esse fim, seguido por Santa Catarina, com 57,6%.
Com a implementação da reforma tributária, empresas atualmente beneficiadas por incentivos tendem a manifestar incertezas quanto ao novo ambiente fiscal. Essa realidade será ainda mais sensível em estados com elevados percentuais de renúncias fiscais. O papel dos municípios será evitar movimentos abruptos ou desnecessários, oferecendo previsibilidade, informação técnica e segurança jurídica. Preservar cadeias produtivas é tão importante quanto ampliar a arrecadação, sobretudo em cidades onde uma única planta industrial ou grande empregador exerce peso relevante sobre a economia local.
Por fim, é preciso reconhecer que a Reforma Tributária inaugura um novo patamar de responsabilidade para as administrações municipais. Não bastará cumprir rotinas burocráticas: será necessário planejar estrategicamente, utilizar dados de forma intensiva, profissionalizar equipes e construir uma cultura administrativa orientada por evidências. O Ceará dispõe de uma tradição de cooperação federativa e capacidade institucional acima da média nacional; o desafio agora é estender essa maturidade às gestões municipais, fortalecendo consórcios públicos, trocas de experiências e políticas coordenadas.
A Reforma Tributária não é um obstáculo inevitável nem uma ameaça ao municipalismo. Para o Ceará, pode representar uma oportunidade rara de consolidar avanços, reduzir assimetrias e modernizar estruturas que há anos aguardam atualização. Essa oportunidade, no entanto, não se materializará automaticamente: a mudança não virá pronta de Brasília. Ela precisará ser construída, planejada e internalizada localmente.
Em um momento em que a política fiscal nacional passa por sua maior reorganização em décadas, os municípios cearenses não podem se limitar a reagir. Precisam se antecipar. Quem se preparar agora não apenas preservará receitas, como ampliará sua capacidade de promover desenvolvimento, fortalecer serviços públicos e construir um futuro mais equilibrado e sustentável.
Alexandre Cialdini é economista, doutor em Administração Pública e secretário do Planejamento e Gestão do Ceará.
José Roberto Afonso é economista, professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDB) e da Universidade de Lisboa; diretor do Fórum de Integração Brasil-Europa (Fibe).






