O senhor quer que eu minta! – escutamos nós cinco, na sala de espera de uma clínica que realiza o exame de vista exigido para obtenção ou renovação da carteira de motorista. Os olhos ainda não testados das quatro pacientes aguardando atendimento (os meus, inclusive), e os olhos da atendente, se voltaram uns para os outros em demonstração de justificável curiosidade.
A porta da sala da médica, localizada mais para o final do corredor, estava aberta. A conversa entre ela e o homem a quem atendia era ouvida por todas nós.
Melhor dizendo: ouvíamos apenas a voz da médica. A voz do homem, que devia estar oferecendo razões e argumentos para o pedido que havia feito – fosse ele qual fosse, era inaudível na sala de espera.
O SENHOR QUER QUE EU MINTA!!! – os argumentos e razões apresentados por ele não devem ter sido convincentes o bastante para tranquilizar a doutora, que elevava a voz a um volume incompatível com o lugar. Do contraponto masculino, nem um ruído se escutava. Devia ser algo sério e grave, porém de breve duração.
Poucos minutos depois do rompante da médica, nossas cinco duplas de olhos estavam transformadas em raios laser, mirando a passagem do homem que vinha pelo corredor.
Estava cabisbaixo e arrastava os sapatos sem ruído, no chão acarpetado. Os óculos escorregavam pela ponta do nariz. Trazia na mão esquerda uma pasta marrom, um tanto surrada. Não olhou para nós, por isso nem viu os cinco pontos de interrogação suspensos sobre nossas cabeças.
Fui a próxima a ser atendida. A médica ainda resfolegava, arrumando papeis sobre a mesa, digitando algo no computador com o indicador da mão esquerda.
A curiosidade me corroía por dentro enquanto o bom senso me ordenava o silêncio. Nada tinha eu de querer saber o que se passara entre ela e o homem, que proposta indecorosa aos brios médicos havia sido feita, para demandar tão categórica rejeição. Meu objetivo era ser aprovada no exame, e partir para renovar minha carteira.
No mesmo dia, eu havia visto outro fato inusitado. Uma mulher visivelmente grávida – talvez sete meses de gestação – esmolava com duas crianças pequenas ao colo, em uma das esquinas da avenida Desembargador Moreira. Uma cena deprimente, a da mulher vestida em andrajos, nas cores entre o cinza e o marrom, as duas crianças semidespidas sobre sua barriga proeminente, implorando pela caridade dos passageiros dos veículos que paravam no sinal.
Alguns passos atrás do pequeno grupo, um rapaz e uma mocinha dormiam a sono solto, aproveitando o sombreado das árvores: ele sobre as pedras portuguesas da calçada, ela em cima de um pedaço de papelão. Ao meio dia, vi os dois despertando: a mocinha em seu top preto, o aparelho celular fazendo volume no bolso traseiro do short colorido, o rapaz ainda segurando o fio do carregador do celular, como fizera enquanto dormia.
A mulher e as duas crianças deixaram seu posto e se aproximaram dos dois. Foi quando vi, com meus próprios olhos, a mulher erguer os braços e remover os andrajos com a tranquilidade de quem se despe do uniforme de trabalho. Vestia por baixo um vestido de malha, sem mangas, com listras horizontais em vermelho, preto e laranja. Não nego ter esperado que ela removesse também a barriga, mas isso não aconteceu.
O casal jovem colocou camisetas nos pequenos, todos arrumaram os cabelos e desceram caminhando no rumo da avenida Beira-Mar.
Foram esses meus grandes pontos de interrogação do dia. Quem eram aquelas pessoas, qual a relação familiar entre eles, seria a mulher mãe das duas crianças, seriam os pais o jovem casal, qual a razão de tamanho sono em horário tão inconveniente, haveria uma hora determinada para concluírem o serviço, de quem partira a ideia daquele disfarce – nada disso fiquei sabendo.
Como também continuei sem saber o que a oftalmologista ouviu de seu paciente na clínica, algo tão indigno que a levara a gritar contra ele no próprio local de trabalho.
Mas não faz mal. São esses pequenos mistérios que acrescentam um toque especial à nossa rotina do dia a dia.
Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus Poder desde 2021. Sócia efetiva do Instituto do Ceará.