Nos últimos anos, temos testemunhado uma profunda evolução nas teorias de risco. O investimento deixou de ser analisado apenas sob o prisma do retorno e passou a ser avaliado, sobretudo, pelo risco que carrega. As turbulências recentes de mercado revelaram a face oculta da curva de risco, já que por trás das tabelas de probabilidade sempre há uma zona menos visível ou improvável, onde o risco se manifesta de forma inesperada e surpreende até os mais preparados. Muitas perdas em crises passadas decorreram da confiança excessiva nos modelos, da má interpretação de seus instrumentos de mensuração ou de uma visão equivocada da realidade.
Essa realidade conecta-se diretamente ao ambiente em que vivemos, marcado pelos conceitos de VUCA (volatile, uncertain, complex and ambiguous) e BANI (brittle, anxious, non-linear and incomprehensible). O termo VUCA, originado no contexto militar norte-americano dos anos 1990, descrevia um mundo multipolar pós-queda do Muro de Berlim. Hoje, aplica-se cada vez mais ao ambiente corporativo, em que mudanças tecnológicas, disrupções e novas formas de concorrência podem tornar modelos de negócio obsoletos em poucos meses. Ainda assim, muitos empresários e organizações seguem agindo como se estivessem em uma condição de estabilidade permanente — percepção ilusória e perigosa, pois retarda adaptações, adia decisões essenciais e cria vulnerabilidades ocultas.
A origem dessa ilusão, em nível individual, é sobretudo psicológica. Buscamos padrões e segurança; a rotina e os rituais cotidianos reduzem a ansiedade e criam a sensação de controle. Mesmo diante de evidências contrárias, tendemos a preservar cenários que sustentam o status quo. Viés de confirmação, excesso de confiança e racionalizações pós-fato reforçam escolhas passadas e dificultam mudanças. Essa mesma lógica se manifesta também nas organizações, em que hierarquias rígidas, contratos e metas de curto prazo reforçam zonas de conforto resistentes a ajustes. Samuelson e Zeckhauser (1988) demonstraram que indivíduos preferem manter a opção enquadrada como status quo, revelando como hábitos, inércia e medo da perda reforçam a resistência a transformações.
Além disso, há o fenômeno da normalização do risco. Pequenas crises, choques setoriais e falhas operacionais passam a ser tratados como parte do funcionamento normal, levando gestores a subestimar rupturas maiores. Relatórios financeiros e métricas de desempenho podem, inclusive, ocultar fragilidades, pois — como apontam diversos compêndios — a rentabilidade passada não assegura resultados futuros, embora muitas vezes nos esqueçamos disso ao tomar decisões. Dependência de fornecedores únicos, sistemas centralizados ou mercados concentrados criam terreno fértil para surpresas negativas. Nesse ponto, Stiglitz (1989) mostra que falhas de mercado não são exceções, mas características estruturais das economias, em especial das emergentes. Confiar apenas em mecanismos de mercado ou em métricas simplificadas é insuficiente para enfrentar riscos complexos.
Esse paradoxo revela-se no modo como líderes e gestores lidam com o mundo VUCA/BANI. Compreendê-lo apenas no plano intelectual não basta; é preciso internalizar essa visão e traduzi-la em práticas e culturas organizacionais. Muitos reconhecem a complexidade em seus discursos, mas ainda planejam como se o futuro fosse apenas a extensão linear do presente. Essa dissonância entre discurso e ação preserva a aparência de estabilidade, enquanto erosões sistêmicas avançam silenciosamente.
A literatura sobre Indústria 4.0 reforça esse ponto. Tecnologias como internet das coisas (IoT), big data e robótica avançada transformam processos produtivos e exigem novas competências. Tais inovações prometem ganhos significativos, mas também ampliam a incerteza, já que sua difusão não ocorre de forma uniforme. Gargalos técnicos e institucionais criam assimetrias entre setores e países, como destacam Lima e Gomes (2020). De forma semelhante, o desenvolvimento dos mercados de derivativos mostra como instrumentos criados para mitigar riscos podem, em determinadas conjunturas, intensificá-los. Farhi (1999) alerta que operações de hedge e especulação frequentemente se confundem, tornando difícil separar proteção de alavancagem. Em tempos de crise, esses mecanismos podem amplificar instabilidades e gerar riscos sistêmicos.
Nesse contexto, torna-se indispensável discutir as transformações das cadeias globais de valor. A experiência recente demonstrou que modelos de eficiência baseados apenas na redução de custos revelam-se frágeis diante de disrupções globais. Por isso, ganha força a relevância de novos requisitos de sustentabilidade e de estratégias que conciliem regionalização e diversificação como mecanismos de proteção. A busca por cadeias mais resilientes, digitais, regionais e sustentáveis traduz a necessidade de equilibrar eficiência com adaptabilidade.
No campo financeiro, o balanceamento dinâmico de portfólio ilustra esse princípio ao ajustar riscos e retornos diante de novos choques, evidenciando que estabilidade real não significa rigidez, mas sim um processo contínuo de adaptação que preserva a capacidade de enfrentar a incerteza. Se, por um lado, a globalização proporcionou ganhos de escala e integração, por outro, também expôs vulnerabilidades em setores dependentes de insumos críticos. O desafio atual é estruturar sistemas produtivos capazes de responder com rapidez a disrupções, ao mesmo tempo em que incorporam critérios ambientais, sociais e de governança (ESG).
Essa necessidade de adaptação constante conecta-se diretamente ao ambiente VUCA, em que líderes eficazes não se apoiam apenas em estruturas hierárquicas e planos verticais, mas em arranjos descentralizados e colaborativos, capazes de reagir com agilidade. Reconhecer a instabilidade estrutural do mundo não é adotar pessimismo, mas praticar humildade estratégica. Nesse contexto, estabilidade real é dinâmica e consiste em preservar propósito e capacidade de resposta diante do imprevisto.
O desafio, portanto, é substituir a ilusão de imutabilidade por rotinas de adaptação contínua. Isso exige não apenas confiar nos modelos de risco ou nas métricas de desempenho, mas também desenvolver sensibilidade crítica para interpretá-los. As ferramentas são indispensáveis, mas jamais suficientes. Devemos entendê-las como recursos valiosos, sem desconsiderar os fundamentos econômicos, os mercados, a qualidade técnica dos profissionais que as utilizam e, sobretudo, as relações geopolíticas em jogo. É nesse equilíbrio entre técnica, visão crítica, sustentabilidade e adaptabilidade que reside a verdadeira resiliência das organizações. Ainda assim, seguimos concentrando ativos e mercados, descasando moedas e taxas, olhando apenas para o passado e acreditando que não é preciso nos preparar — como se a crise nunca fosse se repetir.
Francisco Rabelo é mestre em Finanças. Presidente da Fundação Cetrede
Referências
FARHI, Maryse. Derivativos financeiros: hedge, especulação e arbitragem. Economia e Sociedade, v. 8, n. 2, p. 93-114, 1999.
LIMA, Faíque Ribeiro; GOMES, Rogério. Conceitos e tecnologias da Indústria 4.0: uma análise bibliométrica. Revista Brasileira de Inovação, v. 19, p. e0200023, 2020.
SAMUELSON, William; ZECKHAUSER, Richard. Status quo bias in decision making. Journal of risk and uncertainty, v. 1, n. 1, p. 7-59, 1988.
STIGLITZ, Joseph E. Markets, market failures, and development. The American economic review, v. 79, n. 2, p. 197-203, 1989.