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Saudade daquela tarde. Saudade do sertão; Por Augustino Chaves

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Nota do Editor: O jornalista e escritor Mario Pontes morreu no último 27 de setembro, aos 91 anos, no Rio de Janeiro. Lutou bravamente contra um câncer no pâncreas. Cearense de Nova Russas, Mario foi um dos mais importantes jornalistas do País nas décadas de 1970/80, como editor dos cadernos de cultura do então poderoso e muito influente Jornal do Brasil. Dono de texto brilhante, sofisticado, escreveu livros e traduziu obras estrangeiras para a língua portuguesa.

Quando Mário Pontes chegava a Nova-Russas sua visita primeira era Seu Temóteo, que ele havia me antecipado estar diante do protagonista escolhido a um próximo livro ainda em gestação em seu espírito.

Eu havia conhecido aquele escritor, Mário Pontes, através de um texto seu sobre nosso Cego Aderaldo. Cego Aderaldo, o repentista, o consertador de instrumentos musicais, o andante. Cego Aderaldo cruzava os sertões do Ceará assentado em seu cavalo, ladeado de sua trupe, seu pequeno conjunto de músicos. Não se maldisse da cegueira aos dezoito anos. Inventou uma outra vida. Sempre me perguntei onde foi buscar força, como conseguia guiar e ser guiado pelo cavalo. “O espírito sopra onde quer”. Nosso apóstolo.

Depois, quando ao acaso me deparei no balcão de uma livraria, aqui em Fortaleza, com aquele senhor, que não era frequentador do local, de corpo pequeno, olhos miúdos atrás dos óculos, de blazer, sapato fino e calça social colorida, calmo muito calmo, intuí que sim, só podia ser Mário Pontes em suas viagens a Fortaleza: tinha a marca do sertão dentro dele. Apresentei-me e fomos tomar um café, amizade selada.

Mário Pontes, o menino nascido em 1932 naquelas lonjuras que era a Vila Curtume, tornou-se, quem lhe enxergaria aquele futuro, escritor e tradutor, aportando naquele Rio dos anos sessenta, conquistando naturalmente seu lugar nada menos do que no Jornal do Brasil, ao lado das figuras mais destacadas daqueles tempos.

Imagem panorâmica do velho centro de Nova Russas. A foto está no site do IBGE e não há detalhes da data e nem do autor.

Bem, o intelectual filho daquela Comarca, em visita de saudade a sua terra, chega naquela casa ensolarada, de portas abertas, atravessa as três salas iniciais, dirige-se ao derradeiro salão, uma varanda espaçosa, separada do quintal, em nível mais baixo, que a circundava. Era o ambiente destinado para nos deixar folgado, em amplitude, divisando o lindo céu tão azul do sertão, ouvindo o chocalho das vacas ou o berro de carneiro.

Uma longa mesa de refeição presidia aquela varanda. Seu Temóteo estava lá ao lado da mesa, sentado em sua poltrona, honrando seu estilo de homem bem vestido e seu amuleto de sempre: o charuto aceso. Alegrou-se com a presença do escritor, que chegara sem aviso, naquele final de tarde, a brisa simpática, o calor havia ido, aquela hora onde o sol vem ameno, aos poucos indo embora.

Vovô plenamente reconhecia a singularidade de seu visitante, cuja vitória era a confirmação de que aquele lugar, aquele torrão natal, apesar de todos os seus pesares, coloca-se tão importante quanto qualquer outro: tem sua própria força.

Aquele Tabelião nunca estudou sequer um dia de sua vida em uma escola formal, as oportunidades situavam-se distantes. Mas amava os livros. E amava os livros embora não os lesse. Vovô saudou carinhosamente Mário Pontes. A mim cabia o privilegiado lugar de testemunha dessa prosa interiorana, pausada, tão realista quanto poética, entre esses dois senhores filhos do sertão, um aos 90 anos de sua vida; outro aos 70 anos; ambos vitoriosos, vitoriosos entretanto ponderados, que em seus caminhos ultrapassaram as secas circunstâncias daquela geografia e daquela história.

Mesa farta, da cozinha ao lado emanava cheiros variados de comida sendo preparada; entretanto o traço de ambos vinha na frugalidade ante aquelas iguarias e reservaram-se ao café forte que recendia, acompanhado de um pedaço de bolo, o ritmo devagar em se alimentar, como se naquele ato ficasse revelado que eram pessoas que naquela altura sabiam se entender com o tempo.

Havia um entra e sai discreto de familiares e agregados. Os sons, em plano mais baixo, de passos e de vozes compunha aquele final de tarde.

Um dos livros de Mário Pontes apresenta primoroso título: “Ninguém ama os náufragos”, onde narra a saga do Velho Ribas, maranhense que morou com os índios na Amazônia, com esses nativos aprendeu remédios, e as voltas da vida levaram-no a estabelecer moradia vitalícia naquela então Vila Curtume, futura Nova-Russas, onde casou com Maria e depois com Rita, teve um time de filhos e filhas, e exerceu o mister de ser seu primeiro Boticário.

As voltas da vida que não se explicam. Velho Ribas, meu bisavô, magérrimo em suas roupas brancas, com seus potes de remédios organizados nas prateleiras da farmácia. Ribamar, pai de minha avó Eli, sogro de Temóteo. Temóteo faleceu aos 94 anos, lúcido, andando. Vovó Eli faleceu aos 99 anos, também lúcida e andando. Ontem, 27 de setembro de 2023, foi a vez de Mário Pontes, na lucidez de seus 91 anos, no Rio. Aquela casa grande plantada em Nova-Russas, de sobrado, ensolarada, de quintal, continua lá, como que imune ao tempo, como a reclamar a presença das outras gerações.

Saudade daquela tarde. Saudade do sertão. E saudade um pouco sem consolo da ternura de Mário Pontes.
Augustino Chaves é escritor e juíz federal.

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