
Se eu quiser falar com Deus, talvez precise fechar os olhos e me imaginar rezando na Igreja de Nossa Senhora do Bom Sucesso — templo onde aprendi, menino, os primeiros passos da fé. Foi ali, entre rezas e ladainhas, que se desenhou minha educação espiritual, guiada pelo exemplo sereno dos meus pais, católicos de missa e terço.
No fim de semana passado, voltei àquele templo sagrado. Os festejos da padroeira da cidade onde nasci me chamaram de volta — e, como sempre acontece, fui invadido por uma energia boa, um sentimento antigo que brota do chão de azulejos verdes, das paredes com tintas de memória, dos sinos que dobram quebrando o silêncio daquele vilarejo.
Na porta da igreja, deixei que me fotografassem. E naquele instante, como um sopro vindo de algum lugar entre o sagrado e o esquecido, me veio uma lembrança antiga, de quando eu tinha apenas dois anos de idade — 58 anos atrás. Dizem que eu brincava distraído na entrada quando uma vaca, em disparada, adentrou o templo. Só não me atropelou porque escorregou no piso envernizado. A cada vez que ouvi essa história, ela me chegava como um milagre — e, sim, quem acredita, como eu, sabe reconhecer um gesto de proteção divina.
Aquelas missas de infância com o Padre Heleno, cheias de histórias bíblicas e sermões, moldaram não só a fé, mas também os rituais da convivência: domingo de missa era o dia de vestir a melhor roupa, encontrar os amigos, passear no alarido da feira, partilhar uma galinha caipira suculenta, a primeira coca-cola, o doce de leite que ilustrava a alma.
A igreja de Sucesso integrava a Diocese de Crateús, comandada por Dom Antônio Fragoso, farol da ala progressista da Igreja. Homem culto, corajoso, denunciava a ditadura militar do altar — e suas homilias eram vigiadas por soldados armados. Eu, no entanto, esperava mesmo era pelos cafés da manhã ofertados por dom Fragoso no Palácio do Bispo. Mesa farta, conversa boa, cheiro de pão quente. Era o céu servido com talheres.
Ao contemplar a foto diante da igreja, percebi: aquele quase-acidente foi o primeiro de uma série que me acompanharam pela vida. O último, recente, aconteceu na pista da Avenida Washington Soares. Tentei desviar de uma moto desgovernada e caí. Fratura grave no braço direito. No sábado, entre uma lembrança e outra, li uma entrevista de Paulo Coelho, contando como compôs Não Pare na Pista ao lado de Raul Seixas, numa estrada da Bahia. Aquela frase, que virou música e serve de filosofia de vida para os 78 anos de Coelho, agora me parecia uma oração: não pare na pista.
Agradeci pela sorte de ter sobrevivido a tantos acidentes. Pelos sustos e lições aprendidas com eles. Pelas esquinas que passei, só eu sei. E foi brincando com meu sobrinho Arthur, que mora em Nova Russas, menino encantado que carrega nos olhos a liberdade do sertão, que pensei: tive uma infância assim também. Livre, risonha, de rua, de banho de açude e de sol. Fui menino que estudava perto de casa, que voltava na hora do recreio para comer a tapioca que minha mãe fazia com carinho e sal, vejam que luxo.
Hoje, se eu quiser falar com Deus, talvez não precise fazer mais do que isso: lembrar. Porque lembrar é rezar com os sentidos.
