Foi um estranhamento geral quando se soube que a Cleidinha ia casar com o Zé de Vicente. Era voz corrente por lá, na pacata fronteira entre os municípios de Granja e Viçosa do Ceará, que desde sempre a moça antipatizava com o rapaz, filho do velho Vicente Milagreiro, de quem se dizia ser dono do único exemplar do livro de São Cipriano – livro este certamente capaz de ter auxiliado no casamento dos filhos com as amadas.
Cresci ouvindo histórias sobre esse Livro, me informa Fran, a diarista, retornada na véspera da localidade Testa de Ferro, na Granja, em visita a parentes. Há tempos habituada aos modos da capital, e depois de quase dois anos sem rever a família, Fran vinha admirada com muita coisa. Como o colar de contas coloridas, atadas em fio de nylon, que a sobrinha dela colocara no pescoço da filhinha para proteção no surgimento dos primeiros dentes. Um risco para a criança o fio quebrar, e ela botar as continhas na boca! – e Fran arregala os olhos. Esses medos que têm as mães mais experientes.
Muita coisa lá está mais moderna, mais diferente, depois da internet, mas o povo ainda acredita muito nessas coisas do Livro, ela me diz. Escrevo usando o L maiúsculo pois sinto que a palavra sai de sua boca nessa forma, pronunciada com um sussurro de presságios. Admirara-se também ao saber do casamento de Cleidinha com o Zé de Vicente, atual proprietário do Livro, herdado após o falecimento do pai.
Minha sobrinha “é assim” com a Cleidinha, informa Fran, encostando a vassoura e esfregando os dois dedos indicadores: unha e carne com a Cleidinha, que até hoje não conseguiu botar o olho no Livro, escondido a sete chaves, talvez enterrado no chão, enraizado no fundo de uma das tantas locas em volta do lugarejo.
Deus que me proteja, e que me livre de tamanha curiosidade. Mesmo ciente de que vou mexer com insondáveis forças faz-se evidente que preciso saber mais sobre o Livro de São Cipriano, e os melhores caminhos para tanto se chamam Estante Virtual, Mercado Livre e Amazon.
Encontro a obra no Mercado Livre, em papel, suas múltiplas impressões anunciadas por preços que vão dos 15 aos 666 reais, o número da Besta, talvez propositadamente avaliado assim para atrair os amantes do Oculto. Como a curiosidade é irmã da pressa, encontrar o livro on line me parece bem mais simples e rápido.Amazon.com.br me oferece opção gratuita, e baixo o e-book “São Cipriano Capa Preta – PDF”.
Hermetismo e tecnologia carregam com velocidade sobrenatural em meu computador, revelando o que descubro ser uma versão didática e simplificada do verdadeiro Livro: não o texto autêntico e completo, mas um apanhado geral precedido por breve análise de seus aspectos principais.
Orações, novenas, esconjurações, exorcismos. O número 3 e seus múltiplos, invocados muitas vezes. Longos trechos em latim. Se o livro recomenda uma Oração para a Meia Noite, a Perigosa Hora, ou Contra o Quebranto, ou Para Alcançar a Invisibilidade, ou Para Combater as Trevas e Obter Proteção, traz em contrapartida toda a força atávica de uma Oração de São Cipriano para Destruir a Vida de uma Pessoa, Para Matar Inimigo, Para uma Pessoa Perder o Emprego, ou Para Adquirir Poderes Espirituais e Fazer Feitiços.
Fran largou de vez vassoura e pano de chão, e senta a meu lado para acompanhar na tela as páginas do livro. A senhora tem coragem, ela pergunta. Não tenho, respondo, mas não consigo evitar o que me parece um mergulho em épocas pré-medievais, em um mundo de brumas e enigmas, há pouco saído do caldo primordial da criação.
Gatos pretos e víboras. Encantamentos e rituais. Bênçãos e maldições. Receitas envolvendo óleo e pó, algodão e seda, linho e lã, cabelos de cristãos, de mouros, de hereges. O Bem e o Mal em volume único, impondo respeito quanto a seu uso e ressalvas a caprichos pessoais, a partir de tradições que remontam ao terceiro século depois de Cristo, tempo em que viveram Cipriano de Antióquia e Santa Justina, ambos de formação pagã, decapitados pela conversão ao cristianismo.
É provável que Vicente Milagreiro, barbas brancas de imperador contrastando com o escuro da face, tenha recebido o Livro do pai dele, arrisca Fran, e eu penso se o Único e Verdadeiro Livro de São Cipriano teria vindo com escravizados conduzidos para extrair fortunas inexistentes das lapas e grotas da Serra Grande. Talvez tenha chegado em um saco de estopa, envolto com reverência em um retalho de pano, escondido no fundo de alforjes. Talvez tenha sido folheado por incontáveis anos, à luz de candeeiros, a ponta de dedos acompanhando a vagarosa leitura. Talvez tenha servido apenas para a paz e o bem.
Digo a Fran que tranquilize. O Livro repousa no frio tranquilo da Serra, à sombra dos ipês em flor, entre cânions e cachoeiras, pracinhas e ladeiras, sumido no interior do interior do Ceará. O amor surgido entre Cleidinha e Zé de Vicente pode parecer um tanto mágico, mas que isso não a impressione: não são coisas do Livro, são coisas do próprio amor.
