Apetite. Por Angela Barros Leal

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“Esta sopa, muito apreciada na Inglaterra e nos países de língua inglesa, tem um nome brincalhão”, escreve Carolina Nabuco, autora do Meu Livro de Cozinha, chegado às minhas mãos pela gentileza de uma amiga, a quem compete dar um destino aos livros de bibliotecas órfãs. A data é de 1977, e traz décadas de receitas para opíparas refeições, desfrutadas em mansões de diplomatas, industriais, políticos e membros da realeza.

O nome do prato ao qual a autora se refere é a sopa de falsa tartaruga, ou fausse tortue soupe. E Dona Carolina, escritora e filha do ilustre Joaquim Nabuco, apresenta o primeiro passo: “Escolhe-se para essa sopa meia cabeça (ou uma cabeça inteira) de boi ou bezerro”.

Se eu estava esperando um toque brincalhão, essa primeira escolha não me parece das mais divertidas. Mas há uma razão lógica para a cabeça entrar na composição da sopa, e nela me concentro: a carne da cabeça dos bovinos possui grande semelhança com a da tartaruga, o que facilita a obtenção da base gelatinosa que Dona Carolina deseja alcançar.

“A cabeça pode ser comprada desossada, só com o couro e a carne”, ela assinala, embora o chefe francês, que a ela confidenciou a receita, aconselhe que a cabeça seja “apenas rachada”.

O primeiro passo para a sopa com a cabeça rachada, decapitada, comprada no mercado e carregada para casa dentro de algum recipiente de grande porte, é “lavá-la em abundância de água fria, retirando todo o sangue e raspando bem”. Segue-se a fervura, possibilitando o corte em três pedaços distintos: as orelhas, o focinho e as duas faces.

Nada brincalhão ainda. Prossigo a leitura, sendo informada que o crânio bovino, após cortado em pedaços, deve ser colocado numa panela, mantendo-se todos os pedaços de carne da cabeça inteiramente cobertos pela água. Tão logo esteja cozido, “retirar as orelhas, o focinho e um pedaço da face, e colocá-los numa terrina”. A outra parte da face, esclarece Dona Carolina, permanece reservada para uso posterior.

Vem daí um ballet de elegantes processos e movimentos, incluindo o preparo de um roux (molho espessante básico), um boillon (caldo bem temperado), o uso de um passador chinois (coador de malha bem fina), e voilá! – temos a sopa de falsa tartaruga, feita com a face do boi ou do bezerro para tal fim sacrificado.

Ao longo da descrição, Dona Carolina manteve sua dignidade intacta e não desceu aos detalhes de como se corta fora um focinho, ou como se reparte ao meio uma face, ou como remover os ossos, caso a cabeça não venha desossada. São fases dos preparativos que não cabem às anfitriãs. Das sopas e molhos o livro avança para os peixes, e nossos conhecidos crustáceos. “Todas as receitas para o rei dos crustáceos, que é a lagosta”, como avisa, “têm uma condição essencial: a lagosta deve estar viva”. Garantida a vitalidade da nobre homard, como ingrediente principal do prato de lagosta Thermidor, tem o cozinheiro duas alternativas: “Pode ela ser atirada em água fervendo, ou ser retalhada a faca, antes de ir ao fogo”.

Depois de terem sido as lagostas retalhadas, ou afogadas no líquido fervente, as pinças batendo no ar em busca do inútil socorro, ao ganharem o rubor fatal devem as lagostas ser cortadas no sentido do comprimento, para a retirada do saco de areia, do tubo intestinal, do coral e da sua característica “matéria verde”, tornando-se por fim comestíveis.

Também para a água fervente vão os siris “de bom tamanho”, como prossegue o livro, registrando o cuidado da autora: “Assegure-se de que ainda estão vivos”.

O que se passa na terra e no mar prolonga-se para as aves dos céus e dos terreiros. O pombo com arroz é feito após “esvaziar o pombo”, chamuscá-lo, e repor em seguida seu fígado. Apenas o fígado. Feito isso, a receita pede que seja cortada a cabeça da ave, quebradas as pontas de suas patas, amarrando-as com barbante, sendo as pernas presas ao longo das coxas. Tudo isso post-mortem, o que me traz um certo alívio.

Para a galantine de galinha é preciso desossar a ave, “cuja pele servirá de invólucro”, amortalhando o corpo em si mesmo. A seguir, corta-se a pele do pescoço, “exatamente no ponto em que adere à cabeça”, quebrando-se em seguida, “com um golpe seco”, o osso do pescoço. Retiram-se então as asinhas, “e estende-se a ave sobre o ventre, abrindo-se, com a ponta da faca, a pele das pernas desde os pés até a coxa”.

Esse é o momento de levantar o feixe de nervos, com a mão esquerda, mantendo a delicadeza de quem empunha um violino, enquanto com a mão direita dedilham-se os fios, escolhendo-se um dos nervos mais fortes “para servir como barbante”. Ao aparecerem as carnes brancas do peito, ainda presa aos ossos, devem ser separadas as duas partes da galinha, até expor seus órgãos, reservando-se para uso posterior os pulmões, o fígado e a moela.

Ainda prossegue, a receita. Mas sinto que perdi o apetite.

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