
Era uma maçã vermelha, desavergonhadamente vermelha, se assim posso dizer de uma fruta, exposta em posição de relevo no meio de verdes limões. Era uma maçã brilhante, lustrosa, polida ao máximo por ceras especiais, que acentuavam seu brilho, refletiam a iluminação festiva do supermercado, aumentavam seu poder de atração.
Vi logo que deslizara da bandeja própria, no mostruário do supermercado, onde se misturava a outras semelhantes a ela, e despencara no doce leito dos limões verdes de ciúme, desacostumados a tanto resplendor. Ali encontrara seu merecido destaque.
Talvez tenha tido esse aspecto a primeira maçã do Paraíso, o que bem daria razão ao inexorável desejo de Eva, foi o que imaginei, uma maçã de formosura tamanha que se fez capaz de condenar todos nós ao banimento eterno do Paraíso.
Aliás, penso eu em súbito insight, enquanto recolho a maçã dentre os limões e a coloco no saco plástico, apesar de Adão e Eva andarem despidos pelas sendas edênicas, do que poderíamos deduzir que vivessem sob clima equatorial, o Éden pode ter tido endereço no hemisfério Norte da Terra, em ambiente de temperatura moderada, propício ao frutificar das macieiras.
Ou seria o Éden, sim, favorável ao plantio de bananeiras, frutas que ostentam o nome científico de Musa Paradisiaca, insinuando a possível presença delas no Paraíso. Mas de nada vale a lógica: a Bíblia não seria a mesma se tivéssemos Eva oferecendo uma banana a seu companheiro. Melhor que a maçã permaneça em seu canto, tanto no Éden quanto nos contos e lendas posteriores, nos quais ela se impõe também necessária.
Que criança aceitaria, sem espanto, ouvir a história da Branca de Neve caindo em sono profundo ao morder uma goiaba envenenada, entregue a ela pelas mãos artríticas da bruxa má? Ou uma pera envenenada? Precisava ser uma maçã. Inevitável.
Empurro o carrinho entre as gôndolas do supermercado. A história lendária de Guilherme Tell, o herói da libertação da Suíça, envolve também uma maçã.
Um tirano obrigara aos moradores da cidade a se curvarem ante um objeto inanimado, pendurado na praça pública, um chapéu da nobreza representando o poderio estrangeiro. Guilherme negou-se. Devido à fama de excelente arqueiro, e sob pena de morte imediata, foi ele forçado a acertar uma maçã, posta sobre a cabeça do seu próprio filho. O que conseguiu fazer, para alívio familiar, e para a paz temporária do ditador: a ele seria endereçada uma segunda flecha, caso Guilherme errasse o alvo.
Ressalto que se tratava de uma maçã sobre a cabeça da criança. Não uma nêspera, não um figo, não uma avelã, não uma das tantas frutinhas dos bosques europeus, mas outra vez a maçã.
Justamente a mesma que acumulou fama ao despencar sobre a cabeça de Isaac Newton, em uma tarde inglesa de Verão. Seja ou não fato verídico, conta-se que, enquanto não se transformava em um dos mais famosos físicos mundiais, o inglês aproveitara o recesso da Academia para descansar à sombra de frondosa macieira – que bem naquela hora achou de despencar na cabeça dele um de seus frutos.
Se o rude despertar causou talvez algum leve machucado, proporcionou ao cientista os elementos intelectuais para formular sua Lei da Gravitação Universal, a nossa lei da gravidade, não revogada até hoje. Mais uma vez, precisava ser uma maçã. Fosse um coco, uma manga rosa madura, uma fruta-pão, a Ciência talvez tivesse tomado outro rumo.
Na fila do Caixa as maçãs me perseguem. Escuto All you need is love, em alto e bom som, fazendo tremer o sistema sonoro do supermercado. Claro que lembro da gravadora Apple, criada pelos Beatles nos idos de 1968, e da logomarca mostrando uma maçã verde, colhida diretamente de telas do surrealista francês Renée Magritte, que utilizava a dita fruta, com razoável frequência, em sua temática artística.
Atendo uma ligação no meu celular, que traz a imagem de uma maçã mordida. Rezam as lendas urbanas, justificando a escolha, que teria sido pelo fato de Steve Jobs haver trabalhado em um pomar. Ou pelo fato de ser uma palavra iniciada com a letra A, agilizando os mecanismos de busca. Ou ainda por representar a maçã bíblica, o fruto de todo conhecimento. Quem sabe.
Encosto meu cartão bancário na maquineta e pago minha conta sem apertar um único botão, sem pressionar tecla nenhuma. Deslizando o dedo sobre telas e nuvens, gero ações e reações invisíveis, miraculosas, acima e além da nossa inteligência natural. Tudo graças à curiosidade de Eva, que deu o start a essa história e, por que não, à onipresença da maçã.