O dono da rua Paula. Por Angela Barros Leal

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Na farmácia de manipulação, a moça do caixa pergunta o nome da pessoa à minha frente. Paula, ela diz. Endereço, quer saber a atendente: rua Paula Ney. Uma Paula morando na rua Paula, sorriem as duas pela coincidência, despertando minha curiosidade sobre o dono da rua.

Francisco de Paula Ney fez-se Paula assim como o cronista Antônio Maria se fez Maria. Como Graciliano assumiu ser Graça. Fez-se Paula quem sabe se por preguiça de escrever o nome completo, recebido no batismo, na cidade do Aracati, em 1858; quem sabe, por pouco se preocupar em saber como o chamariam, esse jornalista que quase nunca assinava as matérias por ele escritas e que, com relutância, mal e mal permitia a identificação de seus poemas, publicados nos jornais por exigência dos amigos.

Desde sua chegada ao Rio de Janeiro, em 1876, encaminhado pelo pai para cursar engenharia ou medicina, começara a fazer amigos nas poucas aulas de engenharia que frequentara, contando ter abandonado o curso depois de acompanhar o longo exercício de um mestre, ocupandocom cálculos a lousa inteira e chegando a um resultado igual a zero. “Tanto trabalho para não dar em nada”,protestara o aluno, em uma de suas primeiras manifestações públicas do bom humor tipicamente cearense.

A segunda opção, medicina, foi seguida até o quarto ano,entre o Rio e a Bahia. Do mesmo jeito que os cálculos do mestre engenheiro, em nada resultara. Seria jornalista,trabalhando simultaneamente em publicações de linhaspolíticas opostas, e se faria conhecido como incansávelboêmio, poderoso orador, defensor dos órfãos e escravizados.

Escrevia a mão as notícias que cobririam as páginas dos periódicos matutinos e vespertinos, dedos sujos de tinta,pince-nez a postos. Das redações dos jornais, seu vulto descrito como “magro, curvado e macilento”, cabeça protegida pelo chapéu mole de feltro, saía para reuniões literárias nos cafés, para conspirações políticas nas esquinas da rua do Ouvidor, para se informar do que acontecia no mundo além das portas das livrarias.

Seus amigos mais próximos se chamavam Coelho Neto, Olavo Bilac, Raul Pederneiras, Artur de Azevedo, Raimundo Corrêa, José do Patrocínio, Aluísio de Azevedo, frutos de um tempo especial na história do País, gente que participara da libertação dos escravos e dos movimentos que levaram ao final do Império, celebrando os prenúncios de um novo século que ele, Paula Ney, levado pela morte em 1897, não chegaria a ver.

Eram amigos empenhados em publicar livros e mais livros, enquanto da pena dele nada se enfeixava em páginas, nem se materializava entre capas, suas palavras se desfazendo no ar, restando aqui e ali um poema, como o que dedicara a Fortaleza: “Ao longe, em brancas praias embalada/ pelas ondas azuis dos verdes mares,/ a Fortaleza – a loura desposada/ do sol dormita, à sombra dos palmares”.

Que falta fazia um estenógrafo, clamavam os mesmos amigos, que falta um ágil taquígrafo, capaz de anotar seus improvisos, os discursos empolgados, candentes, iluminados, com que defendia suas ideias ou louvava os que julgava merecedores de serem louvados, que falta não haver um profissional a postos para registrar seus repentes, suas respostas espirituosas repassadas depois, de boca em boca, deliciando quem ouvia.

Pois que nascera orador, com o dom do verbo fácil, com a memória de versos alheios na ponta da língua, aguda como a da serpente para envenenar os antagonistas, com a verve afiada para trocadilhos e gracejos que faziam dele a mais agradável das companhias em torno das mesinhas de mármore dos cafés da Corte e da República.

Ao lhe ser oferecida a opção de uma xícara de café com ou sem conhaque desdenhara: “Prefiro sem café.”Identificado como “Paulo Neiva” no livro Fogo Fátuo, de Olavo Bilac, responde ao amigo sobre uma mulher com quem o personagem iria casar: “Que idade?” – indaga o amigo, para ouvir a resposta dele, em ressonâncias machadianas: “Trezentos contos”…

Era um boêmio “sentimental e sincero”, como descreveram seus contemporâneos, um “dissipador de gênio”, segundo Olavo Bilac. E por incorporar uma bagagem imensa de alegria, de criatividade e de afeto, fixou-se como nome de praça e de rua em Fortaleza, no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Salvador. Tudo isso por ser quem era, sem precisar escrever um único livro…

 

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