No conto “Diante da Lei”, Franz Kafka apresenta um homem do campo que busca acesso à lei e encontra um poderoso porteiro, que confirma a porta, mas lhe nega a entrada por não ser o momento.
Depois de muitos anos de espera e várias tentativas de entrada, o homem do campo envelhece e morre. Ao fazer seu último lamento, ouve o porteiro dizer que ainda não era a hora e que ninguém mais tentou passar porque a porta fora aberta especialmente a ele, e a fecha.
Ao visitar o prédio da Receita Federal do Brasil fui recebido por um porteiro, grande, forte e armado, que me barrou indagando se tinha agendamento, caso contrário não entraria.
Esclarecido o agendamento, esperei por um tempo a senha ser chamada. O agente do fisco, protegido por uma barreira de vidro, disse que não poderia me atender. Explicou que o caso do qual fui tratar estava aos cuidados de um outro servidor, sediado no Piauí em face da distribuição dos processos no âmbito da terceira região fiscal, que abrange Ceará, Piauí e Maranhão, e eu precisaria esperar pelo despacho.
Esclareceu, ainda, que nem por telefone poderia falar com o referido agente do fisco, pois está em teletrabalho, como a grande maior parte dos servidores do Ministério da Fazenda.
Argumentei que ali estava para corrigir um erro da Receita Federal, que encaminhara para cobrança uma multa que antes fora relevada, e essa cobrança indevida estava impedindo a expedição da certidão negativa, exigida pelo fisco para permitir o pagamento de valores devidos por órgãos públicos à empresa que represento.
Ouvi o servidor repetir que eu deveria aguardar a análise do colega piauiense, acrescentando que se me sentisse prejudicado com o tempo de espera poderia reclamar ao Judiciário.
Tentei acesso ao Delegado da Receita e fui retirado do elevador por segurança armado, dizendo que eu não estava autorizado a tanto, e que se manteve inalterado depois de ouvir meu argumento de que a lei confere ao advogado o direito de ingressar livremente em qualquer edifício ou recinto em que funcione serviço público, dentro do expediente ou fora dele, e ser atendido, desde que se ache presente qualquer servidor ou empregado.
Na verdade, pela simples condição de prédios públicos, deveria ser permitido o ingresso do público.
O prédio da Receita Federal está localizado na rua Barão de Aracati, 909. Inaugurado no início da década de 1980, toma toda uma quadra com seus 15 generosos andares.
Projetado pelo arquiteto carioca Acácio Gil Bersoi, é composto por robustos módulos de concreto, alguns dotados de amplos terraços originalmente ornados com jardins de Burle-Marx, que já abrigaram exuberantes pavões. É um belíssimo prédio, referência na arquitetura de nossa cidade.
Nele estive inúmeras vezes tratando dos mais diversos casos. Era livre o acesso a todas as dependências do prédio. Na maioria das vezes fui muito bem recebido pelo Dr. João Batista Carmo Costa, então delegado da Receita, ou pelo Dr. Roberto Martins Rodrigues, chefe da Procuradoria da Fazenda Nacional.
Das janelas de suas respectivas salas, com alguma sorte, via os pavões exibindo suas caudas. Nem sempre meus pedidos eram acolhidos, mas eram apreciados em tempo razoável.
Muita coisa mudou. Aquele belo prédio hoje está praticamente vazio de servidores e as pessoas que ainda insistem em nele ingressar são intimidadas pela falta de simpatia de quem os recebe e pelos seguranças armados.
A Receita Federal continua a posar como o órgão federal mais eficiente, tomando como parâmetro o resultado da arrecadação. Fosse igualmente considerada a qualidade do atendimento que deveria ser dado aos contribuintes, certamente seu lugar nessa medida não seria o primeiro.
Negar qualquer atenção ao cidadão e encaminhar os “inconformados” ao Judiciário, com certeza não é a melhor solução.
Pretender que todo o atendimento passe a ser via internet também não resolve. A falta de resposta se repete na fria tela do computador e a ausência de interação com pessoas se torna absoluta. A intrincada burocracia criada dentro desse sistema só atende aos interesses do fisco.
Naquele dia, o servidor com o qual consegui trocar algumas palavras disse-me que apenas eu estava a reclamar daquela forma. É uma pena, pois sem reclamação a situação do (des)atendimento da Receita só tende a piorar.
Lembrei o que poderiam fazer OAB, Conselho Regional de Contabilidade, Decon e órgãos sindicais na defesa de seus associados quando buscam obter um atendimento digno perante o fisco federal.
Ou seria melhor reler “Diante da Lei” e pensar que Kafka descreveu a realidade do mundo?