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Ramón Romero de Castro, dos mares da Catalunha à Praia de Iracema, o primeiro chef do Ceará

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Antiga Ponte dos Ingleses, na Praia de Iracema: o atracadouro de cargas e passageiros que chegavam e saiam de Fortaleza que funcionou até 1940, ano em que o Porto do Mucuripe entrou em operação.

Por Paulo Elpídio de Menezes Neto
Articulista do Focus

Fundeado ao largo, proa voltada para o nascente, por onde cresciam as primeiras luzes da manhã, o Cabo San Antonio, da Companhia Ybarra, de Madri, aguardava a chegada dos primeiros barcos de terra para levar os passageiros e a carga de desembarque à Ponte dos Ingleses, que hoje teimam em chamar de Metálica, e ao Pavilhão Atlântico.

Fortaleza era, por esse tempo, uma cidade espalhada por entre o areial que se perdia de vista, casario simples subindo as encostas arborizadas que levavam à Praça do Ferreira por estreitas ruas que partiam do antigo forte holandês, fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, e da Santa Casa de Misericórdia, no Passeio Público.

O Cabo San António fundeia ao largo da praia de Iracema
Corriam por esses caminhos os bondes da Ceará Tramway, Light and Power, Co., vagarosos e lerdos a preencher os vazios de ruas de pouco movimento, deslizando sobre os trilhos que chegaram ao lugar em nome do progresso da cidade. Do tombadilho do Cabo de San Antonio os carros esverdeados da “Light” pareciam ainda menores aos olhos curiosos dos viajantes recém-chegados.

A maior parte dos passageiros estava de passagem com destino a outros portos do Sul. Vinham de longínquas paragens mediterrâneas, tendo breve arribação em Belém, onde o barco se aprovisionou do essencial e recebeu o embarque de alguns passageiros. Poucos arrastavam a sua bagagem para os pequenos saveiros que já encostavam à quilha do “vapor”, como ainda eram chamados por esse tempo esses paquetes, com suas chaminés fumegantes e o apito grave que anunciavam as chegadas e partidas.

A carga começava a subir dos porões, não era de grande monta, caixotes de bebidas, alimentos, azeitonas, presuntos, raros artigos industrializados, utensílios de casa, cutelaria, parte dos quais iam às prateleiras da mercearia Joana d’Arc, estabelecimento de renome na rua Senador Pompeu.

Ramón Romero de Castro desembarca sem destino certo
Entre os chegados, destacava-se, naquela manhã ensolarada, a figura corpulenta de um jovem, alto, cabelos revoltos, misturado entre carregadores e passageiros na disputa por lugar nos barcos enfileirados que os levariam à ponte de desembarque. Ramón trazia pouco consigo, nada que demonstrasse posses  ou cabedais, sacola, uma maleta arruinada pelo uso e a inquietação que causam as descobertas aos aventureiros, aos que aceitam o desafio do desconhecido.

Ramón Romero de Castro trazia no rosto bronzeado a marca do sol da Catalunha e nas mãos os calos dos que amanham a terra e cuidam da criação. Era um emigrante solitário, sem propósitos de fixação, vivendo a aventura das coisas inesperadas. Na verdade, não se tinha como tal, alguém perdido sem amarras, jogado à sorte e ao acaso. Descobrira-se catalão, libertado do destino ancestral dos que ficam ou dos que se vão, tangidos pelo desencanto. Decidira-se a revirar mundo.

Antiga imagem de Sitges, município da Espanha na comarca de Garraf, província de Barcelona, comunidade autónoma da Catalunha. Tem 43,85 km² de área e em 2021 tinha 30 217 habitantes.

Trazia no sangue aquela parcela ardente de mouros e bérberes, tornados senhores da Península pelos sultanatos que dominaram as terras e os seus senhores visigodos e cristãos. A notícia daquele lugar distante lhe chegara da oitiva de uma conversa descuidada ouvida em um boteco de Sitges, para os lados da praia, nas vizinhanças de Barcelona. Dois indivíduos falavam, portugueses provavelmente, sobre o Brasil e de uma cidade por onde passaram, embarcadiços de um cargueiro italiano.

Fortaleza ecoara, assim, em seus ouvidos. Tornara-se, agora, realidade, de simples registro casual fizera-se imagem firme e já descia as suas tralhas na ponte de chegada, cercado por ruidosos trabalhadores da estiva e uma pequena multidão que se comprimia no cais movida pela curiosidade que despertavam a silhueta esguia do Cabo de San Antonio e os rolos de fumaça fustigados pelo vento no céu azul, à luz intensa do dia.

A rua dos Tabajaras, corredor de jangadeiros e sobrados
Pequenas casas conjugadas de pescadores, em chegada vizinhança, as jangadas puxadas à praia sobre rolos que as faziam deslizar, compunham a moldura de um arruado ao longo de outra rua, a dos Tabajaras, calçada de pedras irregulares, por onde seguiam os trilhos dos bondes.

De frente para o mar, à esquerda a Pensão Iracema ou dos Pacajus. Ao centro, uma residência de veraneio e, mais à direita, a varanda do restaurante Ramón.

Alguns botequins, uma ou outra pensão de hóspedes, o casario simples da vila de pescadores estendia-se, cedendo lugar, à medida que avançavam na direção da praia de Iracema, aos bangalôs e sobrados, até às proximidades de uma igreja, de São Pedro, ao lado da qual fazia ponto final o bonde que servia àquela linha. Alinhavam-se paralelamente, na confluência com a dos Tabajaras, ruas nomeadas com nomes de tribos que povoaram o Ceará ao tempo da capitania: Arariús, Pacajús, Cariris, Tremembés, Potiguaras…

Ramón foi-se familiarizando com o lugar, perdeu-se nos recantos da sua nova morada, conviveu com novos hábitos, incorporou amigos à solidão de passante mergulhado nas incertezas de um presente por preencher e em um futuro vago e incerto.

Na sua idade, as dúvidas e incertezas dissimuladas não chegavam certamente a preencher a sua vida, mais do que pedia a sua inquietação quase adolescente. Tudo lhe parecia novidade, descoberta e provocação, tal como os desafios da vida se põem aos mais jovens, em começo de vida, desvalidos de experiências que frustram a vontade de enfrentar os riscos e empurrados pela pressa de avançar futuro a dentro.

Fez-se garçom e tudo o mais que se poderia requerer de um estrangeiro para os ganhos da sobrevivência, misturado aos empregados no comércio miúdo da praça do Ferreira. Aprendeu o ofício da cozinha, depois de percorrer os degraus das instâncias menores, da limpeza do salão do Art Nouveau ao fazer-tudo, em troca do que lhe pagavam e de alguns favores que a generosidade do senhor José Rola permitia.

Pelas mãos de d. Nicinha, o encanto revelado pelo alfabeto e pelas palavras
Criança, refiz este percurso os dias da semana contados. Nascido em uma estreita rua mal calçada da praia de Iracema, aprendi as primeiras e surpreendentes letras com d. Nicinha, a quem fiquei a dever, com sua paciência e o riso aberto, ter aberto a cabeça relutante do discípulo, e afastado a indisposição para os exercícios de caligrafia; mas não lhe retirou a curiosidade pelas novidades, em cada lição nova, lida em voz alta.

O ritmo compassado da leitura, escandidas as sílabas com o timbre saboroso da mestra, era de quando em vez abafado pelo ruído arrastado das rodas do bonde e do ranger de suas paradas preguiçosas. Descubro, hoje, ajudado pela memória perseverante, o ritmo compassado da leitura cuidadosa da jovem professora em voz alta.

Rua em que passava bonde fazia o encanto da meninada solta a correr em seu redor. O cobrador, como era chamado, moedas nas mãos, arrancava o tilintar da cobrança da passagem, enquanto esfalfava-se em acrobacias arrojadas para expulsar do estribo os bochecheiros, ágeis em subir ao carro em movimento e dele saltar em algazarra… O motorneiro ou condutor, do alto de sua precedência, enfiado em um dólmã mal-vestido e quepe, pisava no pedal da campainha anunciando a passagem do bonde pelas ruas desertas que margeavam o prédio do IFOCS, das obras contra as secas.

Os olhos furtivos voltados para a cozinha de “seu” Ramón
Por esse tempo, um restaurante se instalara em frente à casa de meu avô: os seus pratos de peixe, caldos e sopas fizeram a sua fama, o Restaurante Beira-Mar, na rua dos Pacajus, 71, sociedade entre Antonio Barbosa e Ramón Romero de Castro. Ficaria conhecido, entretanto, por Restaurante Ramón, desde aqueles longínquos anos de 1926.

Varanda do Restaurante Ramon, defronte ao mar de Iracema: “…as espumas brancas das ondas rasteiras lambiam a amurada do terraço”.

De frente para a praia, com um terraço voltado para o mar, onde, em dias de maré alta, as espumas brancas das ondas rasteiras lambiam a amurada do terraço. As mesas dispunham-se pelo salão e no terraço, ao frescor da brisa do mar. Toalhas simples de xadrez vermelho, e as cadeiras de palhinha compunham o cenário.

A entrada fazia-se pela área de serviço da cozinha, voltada para a rua dos Pacajus. Um pátio pequeno acolhia as compras do dia, e o pesado balcão de madeirame maciço, no qual os peixes eram descamados e arrancadas as vísceras, estava sempre por limpar-se. Mariscos, caranguejos e lagostas, lulas e camarões enchiam o ar com o forte odor de ureia e amônia.

O cardápio já ensaiava, por aqueles tempos, o misto de cozinha mediterrânea, com arremates cearenses: a sopa de cabeça de cangulo era dieta solicitada pelos cuidados dispensados à memória. Mas havia a harmonização de sabores intuída pelo “chefe” Ramón, ainda descuidado destes merecimentos gourmets bem aviados.

A invasão de americanos em vôo rasante pela praia de Iracema
Com a presença de enormes contingentes de soldados americanos, na última guerra mundial, a praia de Iracema tornou-se um dos pontos preferidos dos guerreiros transeuntes, nas escalas dos voos que deixavam Fortaleza com destino a Dakar, e os eventuais visitantes que vinham por motivos diferentes.

O USO, United States Officer, clube de oficiais americanos, concentrava à noite uma alegre frequência. De lá saíam, muitas vezes, os grupos em busca da cavala frita do Ramón ou de uma sopa de cabeça de peixe, especialidade que glorificava a cozinha cearense-catalã de Ramón Romero de Castro. Pois ali, precisamente, tomei a minha primeira coca-cola.

O Ramón revestia-se, aos meus olhos, de um encanto irresistível, um rasgo de coisas proibidas que entravam noite a dentro. Durante o dia, parecia um lugar comum, banhado de sol, a reverberação da luz ampliada pela areia branca da praia. A claridade intensa roubava-lhe o mistério que a noite lhe devolvia. Ao entardecer, iluminava-se pela luz embaçada de lâmpadas, misturada com o cheiro forte da cozinha e a um leve ar da brisa vespertina. A claridade modesta criava sombras e recortes na areia da praia, e o interior do prédio de beira bica ocultava-se, protegido, da visão indiscreta da rua.

Meu quarto, onde eu passava a maior parte do tempo, estudando, dormindo ou a não fazer nada, oferecia uma visão privilegiada do entra-e-sai dos frequentadores. A conversa alegre e ruidosa, entre  os risos chegavam amplificados ao outro lado da rua.

Pelos dias de janeiro, mês de ventos soltos, maré alta e maré baixa, eram comuns as noites de preamar, com o mar revolto e a pancada das ondas na praia aberta. Noites de lua-cheia iluminavam o velho calçadão de pedras da rua dos Pacajus, frequentadores assíduos e os de passagem preenchiam com os seus automóveis os espaços mínimos do calçamento, era para toda a noite, rompida  a madrugada.

Travesssas, panelas e fogões entre estantes de livros de meu avô
Naquela noite, os ventos e a força das ondas, em sucessão de investidas que lhes redobravam as forças, agitaram as águas, a espuma branca espraiou-se rapidamente pela areia, como palmas abertas, à luz fraca de pontos raros de iluminação. Em pouco tempo, o salão foi invadido por uma torrente incontrolável, mesas e cadeiras levadas pela correnteza correndo em direção à rua.

Assisti, da janela que se abria sobre a rua, no andar superior do sobrado, tomado de medo e angústia, o espetáculo das águas enfurecidas, arrastando móveis, utensílios, o que encontrasse à sua frente.

Surge nesse cenário de tragédia e desespero a figura cansada do “seu” Ramón. Empregados o ajudavam no recolhimento do que podiam salvar, geladeiras, balcões, caixas de alimentos guardados no frigorífico. Dominou-me sentimento enorme de medo, susto e pena. A cabeça  de velho Ramón aparecia, entre rápidos relances, por entre a dispersão do que boiava sobre as águas.

Meu avô acudiu aos seus gritos, abriu a casa e foram entrando, porta a dentro, mobiliários, refrigeradores, fogões, o que se salvara das suas artes de cozinha. E recolheu a salva na sala de jantar modesta, afastando móveis, abrindo espaço no ambiente exíguo.

No rosto curtido pelo tempo, o desespero cedera lugar àquele sentimento de perda resignada, do que nada restou a fazer, de sujeição, sustentada pela amarga aceitação do inesperado, de desânimo e da revolta controlada dos simples. Pela manhã nada ou pouco restara de pé. A maré recuara, recolhera-se pelos caprichos da natureza aos confins do mar-oceano, para os lados do finistério, o fim da terra, por onde escoam as águas, as glórias dos homens e a cólera de Deus.

De “seu” Ramón restaram poucas lembranças, notícias vagas e imprecisas de um demorado recolhimento à Santa Casa de Misericórdia, em meio à indigência, tratada pela caridade e o esquecimento. Tempos depois, correu o boato da sua morte, que pobre e desvalido, quando morre, tarda-se por saber da sua paixão sofrida e das dores pelas sobras de lembranças guardadas por poucos. Persistiram, entretanto, na minha  memória, as imagens guardadas pela criança, testemunha amedrontada pelo desespero e a desesperança colados nos olhos do jovem catalão que, segundo a vocação dos da sua grei, lançavam-se pelos caminhos do mar em busca do vasto mundo e de um porto de chegada. Cada um do seu povo e da sua gente traçava o seu próprio destino.

Paulo Elpídio de Menezes Neto é articulista do Focus, cientista político, membro da Academia Brasileira de Educação (Rio de Janeiro), ex-reitor da UFC, ex-secretário nacional da Educação superior do MEC, ex-secretário de Educação do Ceará.

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