E eis que estava eu à toa, a pensar na morte da bezerra. A quem pertenceria a bezerrinha fabulosa, a ponto de fazer tamanha falta, capaz de se perpetuar por gerações, cruzando as barreiras do tempo e do espaço. A quem serviria, com mansuetude, em expectativas de chegar um dia a se constituir em bela vaca, de fartos ubres e de tenra carne. O que teria causado seu passamento, se fatos naturais ou se a ação mais mortífera das mãos humanas.
Então, refletia eu sobre a morte da bezerra sem nome e sem berço. Alguns estilhaços de pensamento perpassavam minha mente qual “nuvens quebradas”, no linguajar do aplicativo do tempo instalado no celular. Interrelações de ideias soltas e esparsas, que costumam repousar no meu Departamento de Assuntos Aleatórios, uma barafunda de informações quase sempre inúteis, portanto, de uso esporádico.
“I was born about ten thousand years ago”. Estava lá, rebolando, a figura de Elvis Presley, cantando em ritmo country acelerado, informando ter nascido uns 10 mil anos atrás. “And there’s nothing in this world that I don’t know” – prosseguia ele, jurando não haver nada nesse mundo que não soubesse. Letra altamente familiar a nossos ouvidos brasilianos, desde quando Raul Seixas estourou no País, em 1976, cantando a história ouvida de um velho mendigo, sentado em uma calçada.
A letra da canção de Elvis já era de domínio público em 1972, ano em que a música foi lançada na voz do Rei do Rock norte-americano. É um passeio pelas páginas da Bíblia, com referências a Moisés e ao Mar Vermelho, ao faraó do Egito e sua filha, ao rei David, aos apóstolos Pedro e Paulo, à arca de Noé, e inclui uma imagem inédita de Jonas engolindo a baleia, e não o inverso.
Raul manteve Moisés, Noé, Pedro e Paulo, ampliando espaço para um universo mais anárquico, povoado por Babilônia, bruxas, o Papa e Salomão, em mistura com as figuras e lendas de Drácula, Zumbi dos Palmares, Hitler, Umbanda e Rapunzel. “Inspirada em” – é como foi definida a letra roqueira nacional, prestando o devido crédito aos criadores da letra original.
Outro caso de inspiração acena no meu Departamento: o da sombria canção dos Rolling Stones, Simpathy for the Devil, voz e coreografia a cargo de um Mick Jagger que a canta envolto em capa escura, acompanhado por um coro de uivos que parecem vindos das selvas. “Please allow me to introduce myself” – ele pede licença para se apresentar, tão civilizado, “a man of wealth and taste” – um homem de posses e bom gosto.
Sabemos logo de quem se trata, a partir das pistas que vai deixando, embora não enuncie seu nome: está por aqui há muitos e muitos anos, roubando almas e a fé da Humanidade. Certificara-se que Pilatos lavasse as mãos, após selar a sorte do Salvador, e estava presente quando Cristo teve seu momento de dúvida e sofrimento. Presenciara a morte do Czar e sua família, ocupara um tanque de guerra atravessando campos de mortos, olhara com alegria o conflito entre reis e rainhas por suas divindades, ao longo de dez décadas.
Por acaso, eu havia encontrado uma das fontes inspiradoras de tão assombrosa composição: o livro O Mestre e Margarida, do autor russo Mikhail Bulgakov, narrativa prodigiosa da visita à Moscou stalinista, dos anos 1920, daquele de quem não se ousa dizer o nome. Uma namorada de Mick Jagger o presenteara com o livro de Bulgakov, surgindo daí a letra e a sinistra ambientação em ritmo de um mambo infernal.
O caldo espesso das gavetas mentais é temperado com a assumida influência do poeta Charles Baudelaire (“Eu tenho mais recordações do que há em mil anos”, escreveu o francês dono de memória milenar, em um de seus poemas da série Spleen, melancolia), confirmando a não existência de nada de novo sob o Sol.
O que somos, creio eu, enquanto continuo a administrar o que emerge de cá e de lá, é um costurado de lembranças impressas na espiral do nosso DNA, vindas pelo cordão umbilical, depois de devidamente diluídas nas águas do lago comunitário, do inconsciente coletivo atômico e celular onde desagua e se agita tudo o que existia antes de nós.
Há divergências quanto a isso, bem sei, mas são coisas que acontecem quando se aciona o Departamento de Assuntos Aleatórios no setor das interrelações lítero-musicais transcontinentais. E o que seria das nossas horas de descanso, se não abríssemos as asas para os saltos mortais da imaginação, voltados a temas supérfluos como esses de que trato agora, nessa crônica que findou sendo inspirada por uma anônima bezerrinha morta.