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Enfim, um jornal inédito, fora de circulação; Por Paulo Elpídio de Menezes Neto

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“Les nouvelles, il n´est pas nécessaire de les inventer, il suffit de les recycler”, Umberto Eco – “Numéro Zéro”, Édition Grasset, Paris, 2015

Por Paulo Elpídio Menezes neto

Dizem os dicionários que  “jornal” provém do latim “diurnalis”, o que veio a dar, em português – “diário, relativo ao dia”, conforme registra Houaiss. “Journal”, em inglês, registro detalhado, já “diary” poderia corresponder a guardados do cotidiano. “Daily”, “diurnal”, “diurnality”, cotidiano…

Os editais, citações, anúncios oficiais, até mesmo manifestações religiosas ou avisos administrativos, a exemplo das 95 teses de Lutero, e a declaração de expropriação de terras pelo fisco, foram as primeiras participações públicas, lidas pelos arautos do Príncipe ou compartilhadas impositivamente como força da repressão, pela inadimplência dos súditos pelos impostos a pagar, ou pelos regramentos, com vistas às criaturas recalcitrantes às ordens da Coroa, nos primórdios da autoridade absoluta.

A tipografia, os impressos de tipos móveis em papel trouxeram a público a voz do poder e as suas ameaças e admoestações. O velho impressor de Mainz, Gutenberg, deu voz e ouvidos às mensagens do trono. Bem mais tarde, abriria espaço para as diatribes contra o poder natural dos soberanos, mas ficaria como obra sua a contestação das imposições da burocracia da fé e da divulgação da palavra de Deus e de seus intérpretes – recolhidos aos livros sagrados das Escrituras…  Afinal, é obra de Gutenberg a vulgarização da Vontade e da Revelação dos desígnios da Fé.

A este tipógrafo coube a engenhosidade da partição das letras impressas em tipos autônomos que, associados em cuidada composição, imprimiriam no papel os depoimentos orais dos Apóstolos. Os “incunábulos” garantiram a segurança da preservação das versões dos fatos e das utopias humanas – em papel impresso, fragmentos que, unidos, construiriam a memória e as lembranças guardadas da humana gente da Criação.

Pois bem, feitos estes esclarecimentos, como aproximação preliminar do texto que me proponho desenvolver, tentemos esmiuçar como de “verdade”, em verdade, vos digo, e, assim, chegarmos à mentira solerte na qual se baseia a mídia que nos cerca e aprisiona com as suas verdades transitórias…

“… all the News that´s fit to print”, trazia o New York Times estampado por aqueles tempos
Os textos e as gravuras de “colportage” serviram como media, assim como as feiras  e os mercados, os “aedos” e a leitura coletiva de textos. Os valdenses eram os caminhantes da revelação, os que divulgavam cópias de passagens bíblicas feitas a mão, contravenção assumida em face dos poderes de Deus e dos homens, conquanto proibidas com severidade pelas instâncias do controle eclesiástico.

Séculos transcorridos, a disseminação da leitura e a importância dos textos impressos alcançaram prestígio insuspeitado, e o condão da verdade, o papel impresso era a prova da verdade do que se dizia ou anunciava na matéria “publicada”, isto é, tornada do conhecimento público.

O jornal mais antigo do mundo impresso, segundo registros históricos, teria sido o “Einkommende Zeitungen”, “Notícias Recebidas”, cuja circulação ocorrera em Leipzig, por volta de 1650. Como veículo de informação a “Acta Diurna” foi, entretanto, um valioso instrumento utilizado por reis e príncipes, do que se tem notícia, editada por Júlio César. As informações eram inscritas em tábuas e colocadas nos muros da cidade para amplo conhecimento dos cidadãos.

Assemelhavam-se a uma forma de propaganda oficial sobre os feitos militares de César, técnica de persuasão que viria a ser usada, com eficiência, séculos seguintes, como, aliás, sabemos muito bem, produzem-se essas “informações”. Na China, como por toda a Ásia e nos lugares mais remotos que se iam civilizando, sob o império das armas e da palavra, a informação, com a sua publicidade, assumiu papel estratégico relevante e decisivo para a afirmação do poder do Estado nascente. E para o resguardo e defesa das considerações de fé.

Antes de vir a denominar-se genericamente “mídia”, os jornais atendiam a designação coletiva de “imprensa”, certamente por alusão à técnica já usada por Gutenberg, antes mesmo do emprego dos tipos móveis, com a impressão das gravuras, esculpidas em madeira e, mais adiante, em metal. Afinal a imagética e os som de broadcast tardariam a impor-se como alternativa à “imprensa”.

Império do Brazil: Dom João VI - Brazil 1808No Brasil, houve recurso a uma designação de mau gosto, o de “imprensa escrita” para contrapor este meio a formas derivadas de “imprensa radiofônica ou eletrônica”. Vista como risco para a ordem estabelecida de um reino de mudança, no desabalado escape às tropas de Napoleão, a tipografia encarnava, na visão prudente do Príncipe Regente, D. João, as ameaças dissimuladas do liberalismo nascente e das novas ideias que abalavam os tronos da Europa. Por tipografia, ao longo de arrastados anos, tivemos a Imprensa Régia, em cujos prelos imprimiam-se jornais bem comportados, relatos da administração e livros, com o “nihil obstat” da autoridade vigilante.

A primeira editora brasileira foi a Casa da Moeda…
O futuro monarca João VI valeu-se, sob a conjugação da força das Cortes Portugueses, do recurso às técnicas da impressão, para o cumprimento de tarefas administrativas circunstanciais. As ideias, por portarem modulações de risco em um processo ainda inicial de formação da opinião pública, cederam o passo a usos administrativos, tais sejam a impressão de títulos de valores e de cédulas e moedas pela Casa da Moeda, a primeira editora brasileira, e de relatórios de governo, sob o resguardo da segurança da sua destinação.

As primeiras tipografias, no Recife e no Rio de Janeiro, imprimiam livros e os jornais , sob controle estrito da Coroa. A tipografia foi, por muito tempo, no Brasil, uma atividade suspeita a ser contida e fiscalizada, assim como as primeiras faculdades e universidades. Não surpreende que a limitação dos recursos gráficos utilizados pelas tipografias impusesse a saída improvisadas, em meio às carências técnicas disponíveis.

Em Caxias, no Maranhão, diz-se ter circulado por muito tempo, um jornal pioneiro, à falta de concorrência nas artes gráficas e no jornalismo. De importância, guardava entre tipos móveis, uma única matriz de metal, um “clichê”, em estereotipia, do qual os tipógrafos  se serviam, quando autorizados pelo chefe de redação, para ilustrar matéria relevante. Trazia a figura bisonha de Floriano Peixoto, enfiado em sua farda de marechal. Crime de morte cometido, na véspera, na rua justamente denominada de Floriano Peixoto, naquela serena Cidade de Caxias, mereceu, graças à importância do logradouro, nota especial e necrológio bastante, ao lado a pose castrense de Floriano, seguida da legenda esclarecedora:  “Na foto, o retrato do marechal Floriano Peixoto, na rua de cujo nome ocorreu  a tragédia na qual perdeu a vida o coronel Eleutério dos Anjos, assassinado a tiros à luz do dia”.

McLuhan e o tambor tribal
É Realizações | Marshall McluhanMarshall MacLuhan trouxe com acuidade perceptiva o enorme poder da fixação de parâmetros rigorosos para o entendimento do que batizou como “media”. É dele a referência  — os “meios são extensões  do homem”, em um texto magistral denominado “Rádio, o tambor tribal”. [Marshall MCLuhan – “O meio é a mensagem”, Ubu Editora, São Paulo, 2018].

O primeiro jornal a circular no Brasil foi a “ a “Gazeta do Rio de Janeiro”, em 1808; trazia com a identificação de seus propósitos a divulgação dos atos e feitos da Coroa, recém-chegada ao Brasil, para governar o Império lusitano — patrioticamente ao largo das forças napoleônicas.

Estas anotações servem para frisar as características originárias da “imprensa” no Brasil: instrumento privativo do poder monárquico e base da constituição do sistema político, em processo de construção, sob a pressão das Cortes portuguesas e de uma nascente oposição, na contraposição de fontes conservadoras e radicais.

Umberto Eco e o jornal inédito “Domani: ieri”
Número Zero: o último livro de Umberto Eco - Escrever e LerPara aliviar, quem sabe, arejar o texto do tom expositivo, exaustivo e provavelmente pretensioso que parece pôr em risco estas notas sobre questão reconhecidamente importante, peço ajuda a Umberto Eco, o semiólogo celebrado, para um mergulho no seu “Número Zero” [Umberto Eco – “Numéro zero”, Paris, 2015, Éditions Grasset]. As formas, as técnicas e a tecnologia do compartilhamento da informação, envolvem, a seu turno, como se terá visto, questões delicadas como o “dizer e o calar”, o pensamento e a omissão e em face da realidade…

Ocorre ao Di Simei (personagem do livro “Número Zero”) dos tempos recuados da universidade, compartilhar com seu discípulo Colonna, escondido por lembranças apagadas, um projeto no mínimo desconcertante. A criação de um jornal cujo destino traçado com antecedência é o de manter-se inédito. Doze números “zero”, de circulação reduzida, destinados a leitores escolhidos, “eleitos”. Gente importante, de preferência, os influenciadores mais notórios, políticos e atores do governo.

Os leitores designados descobririam, no decorrer do desenrolar da aventura que lhes fora reservada, a propensão dos editores para manter o jornal preso a fidelidades indiscutíveis, em defesa da liberdade, da verdade e de certas virtudes incômodas que muito assustam os dignitários do Estado os que têm sob custódia a liberdade alheia. Em uma palavra, ali a verdade seria o condão da informação e da opinião que se haveria de construir naquelas páginas anunciadas. Tudo se faria para que esses registros fossem lidos pelas pessoas “certas”. A força do jornal estaria, como buscava fixar Di Simei e alguns financiadores do empreendimento – inédito. O jornal não circularia, a não ser pelas mãos  devidas, adequadas.

Convencidos de que tais propósitos, limpos e generosos, guiariam o jornal e por temerem quão inoportunos poderiam tornar-se, alguns dos leitores nomeados, puseram-se a campo para impedir a circulação do jornal que, em matéria de circunspecção da mídia nunca se sabe quando podem escapar os vazamentos mais perigosos.

Neste estado de espírito, a “oposição” deu para mexer-se e exigir que o jornal fosse publicado, já que era da índole dos jornais, por aqueles tempos, serem impressos e postos ao alcance dos seus leitores. Nada de censura, preventiva, presuntiva ou corretiva. Mas o propósito claro de despertar as reações do leitor aos seus temores e conveniências eventualmente expostos.

Houve quem atribuísse a Di Simei e a Colonna e aos seus redatores de noticias provisórias, a fabricação de um golpe ou a montagem de uma chantagem explicita. A acusação não se comprovaria. Um cientista politico ou um psicólogo diria, na análise de situação tão surpreendente,  tratar-se de um “experimento social inusitado”. 

Como Maquiavel, o que assumia a forma da palavra não era um ensinamento, o aconselhamento dado ao Príncipe, mas a “verificação” da  realidade. A Di Simei não ocorria chantagear o “ghost reader” designado, porém provoca-lo, melhor dizendo, extraindo as suas reações ao que o jornal poderia “escrever”… E a outros leitores, por se verem compelidos a responder a reações não divulgadas, ainda assim, desaprovadas…

Paulo Elpídio de Menezes Neto é articulista do Focus, cientista político, membro da Academia Brasileira de Educação (Rio de Janeiro), ex-reitor da UFC, ex-secretário nacional da Educação superior do MEC, ex-secretário de Educação do Ceará.

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