Álbum de viagem III. Por Angela Barros Leal

COMPARTILHE A NOTÍCIA

Viagem. Foto: Freepik

Por Angela Barros Leal
Articulista do Focus

Antes, quando todos eram vivos, quando se conversava em família sobre planos de viagens, quando se comparavam lugares de destino em outros Continentes, quando se discutiam roteiros de visitas a cidades e países, era inevitável meu pai repetir a mesma frase: “Boa romaria fez quem em casa fica em paz”. No retorno dos viajantes, ele erguia os olhos sobre os óculos e pontificava: “A melhor parte da viagem é chegar em casa”.

Integrava a imensa multidão envergonhada dos que temem os voos de avião, dos que descreem na capacidade aérea do mais pesado que o ar. Era feliz entre seus livros e sua biblioteca, suas leituras e pesquisas, seus compromissos e amigos. Não via a necessidade de embarcar para lugar nenhum.

Já sei, já li, já ouvi – era o que respondia impaciente, quando o convidavam para passeios além daqueles permitidos pelos veículos de quatro rodas. E se deixava ficar dentro de casa, sem malas e sem mágoas. Na mesa de trabalho, preferia viajar de volta no tempo, reunindo informações sobre os seus destemidos antepassados – ironicamente, aqueles que arrancaram raízes das terras lusitanas, e enfrentaram a travessia de um Oceano para se instalar no Brasil.

Imagem da captura de tela 1Por que viajamos? – indago à assistente virtual Luzia, sempre pronta a emitir respostas. “Por diversos motivos” – ela inicia, um tanto evasiva, sua inteligência artificial detectando minha curiosidade humanamente natural. “Para conhecer novas culturas” – destaca, listando razões em seus elegantes dedos robóticos. “Para relaxar, se aventurar, visitar familiares e amigos, descobrir novos lugares, experimentar comidas diferentes, aprender sobre a história de um local.”

E se apressa em finalizar, quem sabe até pela falta de melhor resposta, oferecendo uma derradeira alternativa, um tanto contemporizadora, assemelhada à que qualquer um de nós, donos da nossa limitada inteligência natural, poderia emitir: “Cada pessoa tem suas próprias motivações para viajar, e aproveitar o que o mundo tem a oferecer.”

Sim, é evidente, minha cara. São 8 bilhões de motivações justificando fechar a porta do tão hospitaleiro Lar, dar as costas à tão segura Rotina, e se atirar nesse turbilhão cego e insensível que é o Mundo Lá Fora.

Desejo provocar Luzia. Você não me deu um retorno preciso, reclamo em vão com ela, que se fecha em um silêncio artificial. Será que, com todo seu input tecnológico, com todos os seus enigmáticos algoritmos, você não lembrou que tudo isso se pode fazer, hoje, sem necessidade de pôr os pés fora de casa?

Terá você esquecido, cara Luzia, que hoje posso visitar as maiores galerias e museus sem me expor aos elementos? Que posso entrar sem convite nos salões de castelos e palácios, como se majestade fosse? Que posso rever meus amigos, todo santo dia, enquadrados a um toque de dedos no brilho das telas? Que é possível conhecer e aprender toda a história de qualquer lugar, com inteira segurança, apenas recorrendo, do conforto da minha cadeira, ao assombroso mecanismo da internet?

Nada disso digo a ela, até para não a entristecer em seu universo pré-programado. O que saberia Luzia sobre o espanto de abrir a porta de um ônibus, e na calçada olhar para o alto, e ver de perto uma espécie de montanha disforme, feita do que parece lava derretida, compondo a estrutura da Igreja da Sagrada Família, em Barcelona? Como imaginaria Luzia o que se sente ao descer na estação de Santa Lucía, em Veneza, aberta para uma dourada esplanada, embarcar em um vaporetto e percorrer as águas ladeadas pelos mais sublimes exemplos da construção humana?

O que sentiria Luzia ao pisar nas escadarias da Torre de Belém, de onde partia-se para a vida e para a morte no finisterra? O que expressaria, em sua linguagem codificada, ao entrar no Coliseu e pressentir o peso imenso da História?

De fato, eu esperava ler que viajamos para encher os olhos com outras possibilidades de vida. Para imaginar o que poderia ser a nossa realidade, caso a sorte – ou falta dela – nos houvesse colocado em lugar diferente do que nos serviu de berço. Para confirmar que não estamos sozinhos, e que a circularidade da Terra mais nos aproxima do que nos distancia.

Nenhuma descrição de foto disponível.No livro A arte de viajar, Allain de Botton revela o que acredita: “O desejo de viajar está ligado a uma ideia enganosamente simples” – afirma: “A de que bastaria nos deslocarmos para outro lugar para ficarmos felizes.”  Infelizmente, complementa ele, “estaremos lá com nossas próprias pessoas, ainda presos dentro de nossos próprios corpos e mentes, com todos os problemas que isso acarreta”. Uma resposta com a qual meu pai, sempre tão feliz em casa, concordaria.

Leia as duas crônicas que completam a trilogia
+ Álbum de viagem I
+ Álbum de viagem II

Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus.jor.

COMPARTILHE A NOTÍCIA

PUBLICIDADE

Confira Também

Conselho Nacional das ZPEs aprova cinco data centers de R$ 583 bilhões e consolida Ceará como Green Digital Hub do Atlântico Sul

Governador do Rio elogia “coragem e determinação” de Elmano após ação que matou sete faccionados em Canindé

No Focus Colloquium, a Política das conveniências: entre a força e o cálculo

Powershoring: o Nordeste no centro da nova revolução industrial

André Fernandes reafrima aval de Bolsonaro para aproximação com Ciro Gomes

Lula e Trump: O encontro que parecia impossível

Ciro volta ao PSDB; Tasso dá missão dupla e oposição mostra força e busca cola para justificar as diferenças

Ciro retorna ao ninho tucano: ao lado de Tasso, mas com o PSDB longe de ser o que já foi

TRF de Recife proíbe cobrança de “pedágio” na Vila de Jeri

Dois históricos antibolsonaristas, Ciro e Tasso juntos no PSDB para construir aliança com a direita

Série Protagonistas: Chagas Vieira, o interprete das ruas

Focus Poder inicia a série Protagonistas com o perfil de Chagas Vieira, o “interprete das ruas”

MAIS LIDAS DO DIA

Racha na oposição: Moses, do UB, anuncia apoio à reeleição de Elmano durante evento em Itapipoca

Pasárgada, Brasil; Por Gera Teixeira

Por uma sociologia da ditadura; Por Paulo Elpídio de Menezes Neto

Pesquisa: PT domina relevância digital e amplia vantagem sobre PL nas redes sociais

Conselho Nacional das ZPEs aprova cinco data centers de R$ 583 bilhões e consolida Ceará como Green Digital Hub do Atlântico Sul

Engenharia do negócio — os bastidores do mega distrito digital do Ceará

Supremo inicia em 14 de novembro julgamento de denúncia contra Eduardo Bolsonaro por coação

Câmara quer votar simultaneamente PL Antifacção e proposta que amplia Lei Antiterrorismo

Elmano envia à Alece projeto que garante CNH gratuita para mulheres vítimas de violência