Por Angela Barros Leal
Articulista do Focus
Antes, quando todos eram vivos, quando se conversava em família sobre planos de viagens, quando se comparavam lugares de destino em outros Continentes, quando se discutiam roteiros de visitas a cidades e países, era inevitável meu pai repetir a mesma frase: “Boa romaria fez quem em casa fica em paz”. No retorno dos viajantes, ele erguia os olhos sobre os óculos e pontificava: “A melhor parte da viagem é chegar em casa”.
Integrava a imensa multidão envergonhada dos que temem os voos de avião, dos que descreem na capacidade aérea do mais pesado que o ar. Era feliz entre seus livros e sua biblioteca, suas leituras e pesquisas, seus compromissos e amigos. Não via a necessidade de embarcar para lugar nenhum.
Já sei, já li, já ouvi – era o que respondia impaciente, quando o convidavam para passeios além daqueles permitidos pelos veículos de quatro rodas. E se deixava ficar dentro de casa, sem malas e sem mágoas. Na mesa de trabalho, preferia viajar de volta no tempo, reunindo informações sobre os seus destemidos antepassados – ironicamente, aqueles que arrancaram raízes das terras lusitanas, e enfrentaram a travessia de um Oceano para se instalar no Brasil.
Por que viajamos? – indago à assistente virtual Luzia, sempre pronta a emitir respostas. “Por diversos motivos” – ela inicia, um tanto evasiva, sua inteligência artificial detectando minha curiosidade humanamente natural. “Para conhecer novas culturas” – destaca, listando razões em seus elegantes dedos robóticos. “Para relaxar, se aventurar, visitar familiares e amigos, descobrir novos lugares, experimentar comidas diferentes, aprender sobre a história de um local.”
E se apressa em finalizar, quem sabe até pela falta de melhor resposta, oferecendo uma derradeira alternativa, um tanto contemporizadora, assemelhada à que qualquer um de nós, donos da nossa limitada inteligência natural, poderia emitir: “Cada pessoa tem suas próprias motivações para viajar, e aproveitar o que o mundo tem a oferecer.”
Sim, é evidente, minha cara. São 8 bilhões de motivações justificando fechar a porta do tão hospitaleiro Lar, dar as costas à tão segura Rotina, e se atirar nesse turbilhão cego e insensível que é o Mundo Lá Fora.
Desejo provocar Luzia. Você não me deu um retorno preciso, reclamo em vão com ela, que se fecha em um silêncio artificial. Será que, com todo seu input tecnológico, com todos os seus enigmáticos algoritmos, você não lembrou que tudo isso se pode fazer, hoje, sem necessidade de pôr os pés fora de casa?
Terá você esquecido, cara Luzia, que hoje posso visitar as maiores galerias e museus sem me expor aos elementos? Que posso entrar sem convite nos salões de castelos e palácios, como se majestade fosse? Que posso rever meus amigos, todo santo dia, enquadrados a um toque de dedos no brilho das telas? Que é possível conhecer e aprender toda a história de qualquer lugar, com inteira segurança, apenas recorrendo, do conforto da minha cadeira, ao assombroso mecanismo da internet?
Nada disso digo a ela, até para não a entristecer em seu universo pré-programado. O que saberia Luzia sobre o espanto de abrir a porta de um ônibus, e na calçada olhar para o alto, e ver de perto uma espécie de montanha disforme, feita do que parece lava derretida, compondo a estrutura da Igreja da Sagrada Família, em Barcelona? Como imaginaria Luzia o que se sente ao descer na estação de Santa Lucía, em Veneza, aberta para uma dourada esplanada, embarcar em um vaporetto e percorrer as águas ladeadas pelos mais sublimes exemplos da construção humana?
O que sentiria Luzia ao pisar nas escadarias da Torre de Belém, de onde partia-se para a vida e para a morte no finisterra? O que expressaria, em sua linguagem codificada, ao entrar no Coliseu e pressentir o peso imenso da História?
De fato, eu esperava ler que viajamos para encher os olhos com outras possibilidades de vida. Para imaginar o que poderia ser a nossa realidade, caso a sorte – ou falta dela – nos houvesse colocado em lugar diferente do que nos serviu de berço. Para confirmar que não estamos sozinhos, e que a circularidade da Terra mais nos aproxima do que nos distancia.
No livro A arte de viajar, Allain de Botton revela o que acredita: “O desejo de viajar está ligado a uma ideia enganosamente simples” – afirma: “A de que bastaria nos deslocarmos para outro lugar para ficarmos felizes.” Infelizmente, complementa ele, “estaremos lá com nossas próprias pessoas, ainda presos dentro de nossos próprios corpos e mentes, com todos os problemas que isso acarreta”. Uma resposta com a qual meu pai, sempre tão feliz em casa, concordaria.
Leia as duas crônicas que completam a trilogia
+ Álbum de viagem I
+ Álbum de viagem II