Das artes do governo entre cidadãos condominiais. A “democracia” sobrevive entre condôminos beligerantes?
“Os abaixo assinados, titulares de direito e ação sobre o Condomínio xxx, firmam a presente Convenção para administração, conservação e ordem interna do Edifício...”, dos propósitos de uma Convenção…
Um amigo curioso que andou a ler na juventude já distante tratados e obras referenciados nos domínios do direito constitucional, anda interessado em estudar a estrutura de poder do “condomínio” (instância legal que governa e rege os instrumentos e as regras, os direitos e deveres dos que habitam coletivamente em um mesmo imóvel). Insiste este pesquisador, sponte sua, em invadir as intimidades do empirismo, modismo que, de tempos em tempos, retorna aos impulsos de analistas sociais, até mesmo dos constitucionalistas.
Insiste, perseverante, em ir além dos contornos dos regramentos do Estado. Andou a ler alguns behavioristas americanos, sobreviventes ao “new-constitutionalism” e quer porque quer aplicar a mesma metodologia ao estudo do poder e influência em um condomínio. Dei-lhe alguns conselhos, mas não consegui removê-lo desta comichão de micropolitica que o domina.
Morar em um condomínio ou da arte da contemporização
Alguns antropólogos franceses deram a categorização de “antropotecas”, a exemplo de bibliotecas, a este ajuntamento de criaturas que as circunstâncias tornaram “vizinhas”, parceiros e, no mais das vezes, interlocutores recalcitrantes.
Falam mais de perto ao aplicado pesquisador as relações entre condôminos e os limites das competências do síndico do que das precedências de autoridade entre governantes e governados neste microuniverso de poderes compartilhados.
Este estudioso do universo de proprietários e inquilinos está convencido de que o condomínio é a construção que mais apresenta afinidades essenciais em comum com a democracia.
Quem manda no condomínio?
Explica este perseverante micro constitucionalista que o condomínio é um território compartilhado entre pessoas que participam do empreendimento imobiliário no qual habitam. Muitos deles associaram-se na formalização do projeto e na edificação da obra na qual se tornam justamente, na forma da lei, além de proprietários –“condôminos”.
Teoricamente, todos desfrutam de direitos e deveres iguais, na medida exata da sua participação como “cotistas” proprietários. Não há precedências, em função do andar em que habitam, tampouco exceções, por idade ou por qualquer outro motivo conspícuo. Todos recolhem a mesma taxa de condomínio e as quotas extras. E, salvo circunstâncias personalíssimas, pagam com o mesmo desagrado as multas impostas pela convenção.
Há uma tendência à formação, neste condomínio de proprietários, de grupos de pressão ou de interesses compartilhados que se opõem ou assentem entre si sobre o que melhor lhes parece para todos. Nenhum traço de presunção ideológica ou inquinação discriminatória, bem se vê. Contam, mesmo, e valem as vantagens e os pequenos privilégios que cada um pode extrair do patrimônio coletivo. As alianças e convergências – afinal, estamos a tratar de uma comunidade de pessoas e interesses, como ocorre nas relações sociais, por isso não podem ser omitidas – induzem com mais frequência, a propensão para a formação de grupos solidários de poder e influência.
Tal qual ocorre em uma empresa de acionistas ou em sociedades de responsabilidade limitada. Ou na sociedade civil, com os alinhamentos políticos, ideológicos e partidários, entre os quais se movem os “influencers” do grupo. Nenhum grupo organizado, aliás, nem mesmo os “out law”, infratores e delinquentes em seus conluios de mando deixam de fixar normas e regras, associados em uma maioria propositiva respeitada.
A estratificação social dos moradores de condomínios
Tenha-se em vista, entretanto, que apartamentos residenciais, condomínios na formatação legal, tal qual a conhecemos, não escapam ao seu valor patrimonial.
O local no qual se situa um condomínio traça uma linha visível da condição social e econômica dos seus moradores. Há nítida diferença entre bairros e logradouros. A natureza e o valor da sua identidade patrimonial surgem da fachada do prédio, dos terraços e da sua altura, as “torres”, sobem aos céus na justa medida do IPTU que o poder público cobra. Bairros nobres e bairros pobres, apartamentos de aluguel e quitinetes de temporada, lugares respeitáveis ocupados por famílias igualmente respeitáveis e recolhimento de garotas de programa.
Do ponto de vista da representação nas instâncias de governo do condomínio, o condômino fala em seu nome próprio, mas, por vezes, como porta-voz de um grupo que gera personalíssimas solicitações e aviamentos de exceção.
Praticando a democracia entre condôminos arredios ao consenso
O adequado uso da palavra, o emprego contido da retórica, própria a ambientes plurais, como assembleias políticas e condominiais, estão longe de fazer morada entre a população de recalcitrantes dissidências, como ocorre nesta comunidade de vizinhos aleatórios, reunidos por puro acaso. As reuniões e assembleias reproduzem o clima conflituoso que se arma a partir da conjugação e disjunção de interesses. A omissão, a exemplo do cidadãos-eleitores que deixam de comparecer às eleições e anulam o seu voto, nestas decisões assume especial significação.
Assim é no condomínio, como na sociedade civil, na sociedade por ações, como nos partidos políticos e até nos sindicatos… Em todas estas variadas instâncias, a estas confrontações dá-se, via de regra, a denominação de organização “democrática”. As assembleias, quando os condôminos se reúnem para tomar decisões, funcionam como plenário de confrontações, comedidas por vezes, ruidosas, quase sempre.
Característica própria ao condomínio é, a exemplo da sociedade em que se associam e vivem os humanos, a capacidade que têm os condôminos para consolidar redutos de poder e dar-lhes permanência. A formação de uma maioria disciplinada e operante lembra, com as necessárias reservas, as relações que se armam e consolidam no seio dos partidos e nos centros decisórios dos governos. Daí a semelhança que une estes universos, aparentemente tão distantes.
O condomínio corresponde a uma redução do poder politico do Estado, em escala que pode, assim, identificar essas relações como um universo micropolitico de decisões definitivas, apenas limitadas pelo Regimento e pela lei.
As formas de oligarquias lembram, no condomínio, variações, segundo os grupos familiares ou de interesses que se formam e decidem pela maioria designada… A estratificação desta população de moradores parece visível, aparentemente composta por criaturas normais: aposentados e cidadãos atuantes, viúvos ou viúvas, jovens casais a dissipar a herança acolhida, funcionários de elevadas instâncias, empresários cansados de guerra. A cada um desses atores corresponde um papel e níveis variáveis de respeitabilidade.
No mais, a indiferença dos condôminos em relação a matérias significativas do governo condominial, deixa nas mãos de alguns poucos “oligarcas” e “influentes” a capacidade de decidir e de aplicar as próprias decisões. E, naturalmente, fixar uma linha de sucessão por direito adquirido, sem conflitos ou indisposições.
Tal qual como ocorre na sociedade política a que pertencemos como contribuintes e cidadãos. A condição de condômino corresponde, “ab ultimo”, com licença do registro latino, a uma forma bem peculiar de preencher as responsabilidades da cidadania… Tornei-me um “condômino”, além de cidadão prestante, há algumas décadas que, por conveniência me abstenho de revelar o quanto.