Imprensa combate-se com imprensa
D. Pedro II
Confessava-me um amigo, em discreta revelação, que, a cada vez que se punha a escrever sobre questões políticas correntes e sempre que procurava oxigenar a realidade com algum toque teórico, era dominado por incerta e confessada insegurança.
Percebia com enorme preocupação acentuar-se esse estado de espírito na presença de interlocutores, nos seus encontros com amigos, nas mesas de chope, e, sobretudo, nos ambientes acadêmicos frequentados pela imposição de ofício intelectual. Assaltavam-lhe habitualmente dúvidas desconcertantes sobre como dissimular os seus vazios de inteligência, sem parecer, todavia, pedante. Como vestir aquele ar intelectual que tanto sucesso fazia entre interlocutores deslumbrados com a menção a autores desconhecidos e as citações guardadas para as ocasiões de necessidade sem a obrigação de aprofundar a sua profícua prosa.
Tomava, com a prudência dos homens bem avisados, nesses momentos fugazes, os cuidados propícios diante de tais expectativas. Causavam-lhe ansiedade e uma certa frustração a sua insegurança no manejo do equipamento a que recorrem as criaturas cultivadas para exibir os dotes intelectuais, pouco visíveis na maior arte dos casos. E indagava-se, nessas ocasiões de recolhida meditação interior, como proceder para ser acolhido como intelectual e merecer esse distinguido tratamento.
Escolhera a escrita, à falta de dotes para o exercício de outras artes, o canto, a música, a pintura ou práticas julgadas menores, tais a heráldica, a memorabília e a genealogia. Fixara-se, por fim, na artesania das palavras desde que, a exemplo de Monsieur Jourdain, descobrira escrever habitualmente em prosa, já que não lhe fora dado talento suficiente para expressar-se em poesia.
Não ficavam, entretanto, por aí, as suas aflições. Como uma pessoa dada às letras haverá de escapar da armadilha da qual poucos se livram, os que escrevem em prosa e até mesmo constroem poesia, ao ceder à ambiguidade das palavras e dos tropos? Notara, entretanto, que alguns trabalhadores da palavra, mais argutos e espertos, livravam-se dos riscos da sorte, graças a porfias que os levavam a percorrer desvios salvadores.
De que perigos, afinal, estamos a falar?
A quem escreve, sem condicionamento de gênero literário, sobretudo os que se aventuram pela cabotagem arriscada das coisas da política, restam poucas alternativas diante do julgamento inevitável a que se submetem as criaturas de opinião. Raro que sejam considerados pelo que pensam; certamente são, entretanto, julgados pelo que o leitor lhe atribui. A opinião do autor forma-se, na maior parte dos casos, pela vontade do leitorado, pelos olhos que são trazidos para a leitura do texto, como se comprazia afirmar Barthes.
A percepção do conteúdo, a ideia, não se os encontra no que está escrito, porém na leitura de quem aborda a matéria escrita. Pois aí está. O medo daquela criatura estava precisamente em como seria interpretado e não pelo que afirmara. Duvido que dessa preocupação, angústia renovada, digamos assim, seja poupado quem quer que escreva para a leitura por terceiros. Como o amigo referido, trago comigo alimentada a síndrome da decomposição da opinião, de como nossos escritores haverão de ser lidos e percebidos pelos que dispensam a indulgência de nos lerem.
Tamanhos riscos cresceram em tempos recentes, por causas variadas e contraditórias. Pela revolução semântica em cujo nome é trocado e desvirtuado o significado real das palavras, pela intolerância gerada no ventre das utopias transfiguradas em ideologia, pela certeza das ideias salvadoras, pela condenação do passado e a antevisão de um futuro imaginado, pressentido entre os impulsos a que se chama por estes dias – de progresso.
Se nos é reconhecida a condição de intelectual, pelo juízo da contemporaneidade, corremos o risco incontornável de sermos considerados de “esquerda”. Se não formos premiados com esse rótulo de vanguarda, sobram as categorias de impostores ou de “direita”, tratamento pejorativo do qual ninguém se livra em vida ou depois da morte. Nesses termos, progressistas são os descompromissados com o passado e os agentes da modelagem do “homem novo”.
Progressismo é a mostra antecipada e premunitória do fortalecimento do Estado sobre vãs e desprezíveis intenções de um liberalismo repaginado que já foi burguês e mercantilista, a fugir das imposições do Príncipe para, finalmente, deixar-se libertar pelas garras do Leviatã.
Nos países periféricos – recorro perversamente a um paradigma de esquerda – esse estado pós-semântico agravou-se nas últimas décadas, nos anos que se seguiram ao fim da segunda guerra mundial. A contraposição esquerda-direita ruíra nos anos 90, com a desagregação do império soviético, desde os começos da guerra civil europeia dos anos 17, mas renasceu, com mais força até nos tempos recentes. De tal modo confundiram-se doutrinas e conceitos, de lá para cá, que, a rigor, muito poucos sabem como empregar adequadamente os motes substantivados “esquerda” e “direita”. Fazem-no com desenvoltura, aliás, não há como desconhecer, cada um enfiando na sua linguiça os embutidos da sua preferência.
Não somos exceção. Temos, no Brasil, uma visão muito peculiar dessa destemperança ideológica. E dela fizemos arma poderosa que, em mãos pouco afeitas à racionalidade, transformou-se em engenho de destruição, cujos estilhaços cobrem consciências e bons propósitos anunciados.
Ao estilo bolchevique e dos campos hegemônicos que incharam nos seus quintais, a técnica é simples e persuasiva: o argumento a contraditar, posto na mira de longo alcance da descarga de tiro, interessa menos do que desqualificar o opositor. Valem menos as ideias e suas interpretações do que o interlocutor que vocaliza ou registra a crítica a ser desmontada. O alvo não é a afirmação, mas quem a profere.
A chama contestatória não se acende em face do calor dos argumentos. A dialética não busca as ideias, porém como desqualificar que as manifesta. A negação nós a trazemos nos olhos e na recusa de levarmos em conta e consideração o argumento que nos incomoda…
Assistimos, no Brasil, desta nossa abjeta contemporaneidade, a uma guerrilha miúda em que as pessoas não discordam das ideias (aliás, poucas são as ideias para com ela concordar ou discordar), empenham-se em fazer do interlocutor o objetivo ad hominem para calar ou destruir. A censura torna-se o instrumento mais eficaz para demolir evidências, opiniões e reputações – apagando-as antes que se transformem em palavras escritas e mexam com a consciência dos recalcitrantes.