Por Angela Barros Leal
Articulista do Focus
Vó, se os dinossauros botavam ovo, eles eram aves – afirma espantado meu neto mais velho, de 9 anos, que assiste a um documentário sobre eles na TV. Na escola, o menino está estudando sobre ovíparos e vivíparos, daí a atenção extra.
De fato, o que ele diz parece ter um certo sentido. Olhos arregalados, nos entreolhamos por um breve momento, como se houvéssemos desvendado um mistério milenar, ambos imaginando os monstros pré-históricos, que conhecemos de tantas imagens e de tantos vídeos, a percorrer os caminhos primitivos do planeta com suas pesadas patas, agitando para cima e para os lados suas penas gigantescas.
Jacaré bota ovo – retruca o neto caçula, de 7 anos, um tantinho incomodado com a conversa pré-histórica, levantando os olhos dos passes que treina, a bola de futebol presa entre o peito do pé e a canela fininha. Tartaruga bota ovo. E nada está mais distante de possuir penas do que esses dois répteis vestidos com suas carapaças –, lembramos na hora, meu neto mais velho e eu, caindo na real.
Rapidamente depenamos os dinossauros, fazendo de conta que ninguém falou coisa alguma. Ele volta para o documentário. Eu volto para o livro que estou lendo, e que levei para a casa deles, como parte da luta diária para implantar neles o gosto pela leitura.
O pequeno não larga sua bola, incansável. É engraçado, esse menino, nascido como parte da espécie sobre a qual se diz, sem maldade, que “não engorda de ruim”. Não se alimenta tanto quando o mais velho: esse já se mostrou capaz de devorar dois ou três pratos seguidos, com a avidez dos resgatados de um naufrágio. Mas a essa altura, até mesmo pela fidelidade com que consome seu prato único, bem que o pequeno poderia ter ganho alguma cobertura, de carne e gordura, que ocultasse a estrutura aparente das costelas.
(Nelas, para fazer graça, costuma tanger com o polegar da mão esquerda, canhoto que é, as cordas imaginárias de um violão. Saltitando pela casa, faz de cada costela uma corda musical inaudível.)
Outro dia surpreendeu a família com uma notícia inesperada: inscrevera-se para disputar o cargo de Representante da Sala, no colégio onde ambos estudam. A escola deles costuma ter esse tipo de iniciativa político-educativa, preparando as crianças, desde cedo, para o que se convencionou chamar “exercício do dever cívico”.
Não se sabe como as crianças debateram a estratégia de campanha, porém o melhor amigo dele, até então um dos que se qualificaram a disputar o cargo, achara por bem desistir, cedendo o lugar a ele e somando eleitores.
A comunicação da campanha restringira-se à elaboração de um cartaz, em cartolina, a ser afixado na parede da sala, ao lado dos cartazes dos demais concorrentes. O menino tratou de desenhar a peça sozinho. O nome dele em letras maiúsculas, escrito com surpreendente segurança. Uma foto do seu rosto sorridente, recortada de uma imagem da família. E duas colunas largas, onde listara suas três promessas de campanha: implantação de mais campeonatos esportivos, ajuda aos amigos, auxílio às professoras.
(Por que você não escreveu ‘ajuda aos colegas’, mais geral, ao invés de ‘ajuda aos amigos’? – foi uma das perguntas que fiz, ao avaliar profissionalmente o cartaz, condicionada por um mundo dividido em categorias distintas. Porque todos os meus colegas são meus amigos – ouvi em resposta.)
O resultado da apuração dos votos não foi divulgado em casa por ele, e sim pelo irmão mais velho, o que sabe tudo sobre futebol: os times campeões, as bandeiras dos países que compõem os jogos mundiais, os valores das negociações entre clubes, a posição dos jogadores e seus nomes, sonhando em vir a ser um deles.
O pequeno vencera a eleição com certa folga, e tomara-se de encabulamentos para comunicar a vitória à família. Sabia que o fato ia ser fonte de risos e de repercussões –, como essa aqui, que ele não há de ter acesso tão cedo.
Agora se fez mais sisudo, mais responsável, imbuído da seriedade associada ao cargo recém-assumido. Certamente deve estar sendo cobrado pela execução das promessas feitas, precisando dar atenção aos campeonatos, às professoras e aos colegas – ou melhor, aos amigos.
Eles são apenas algumas das crianças que irão crescer para se fazerem profissionais liberais, empresários, empreendedores, políticos, esportistas, e que chegarão ao ano 2100 como saudáveis octogenários: o que me provoca uma saudade imensa do futuro que não verei, que não veremos nós. E essa é uma realidade que, como avó-dinossauro, me dá muita pena…
Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus.jor.