De repente, caímos sem méritos de conta, na fogueirinha das nossas vaidades.
Dos estados da federação, ganhamos do resto do país como leitores assíduos, praticantes. Desconfio da segurança dessa pesquisa que nos conferiu as benesses civilizatórias de que andávamos carecendo, Não que suspeite que os cearenses não leiam. Longe de mim esse sentimento maldizente. Não me atreveria a buscar recursos para a aferição dessa preciosa informação. Preocupo-me, entretanto, com o que possam estar a ler.
As bases do conhecimentos são construídas, como sabemos, a partir de alguns procedimentos de relevante alcance cognitivo. “Leitura, escrita e interpretação” são a trilha de uma longa caminhada que não terminará jamais.
Bárbara Freitag, educadora exemplar deixou no “Diário de uma Alfabetizadora”, o testemunho de uma experiência incomum. Descobrira que a doméstica (“secretária-do-lar”, dessas designações fantasiosas usadas para esconder o trabalho doméstico remunerado) recentemente admitida para o serviço ativo da família — era analfabeta. Decidiu-se por alfabetizá-la e deste feito memorável registrou todos os passos dessa orgia pedagógica. A leitura era, naquela casa dos Rouanet, artigo de primeira necessidade. Casal constituído por mútua afeição e pelas peregrinações, a desoras, pela filosofia, pela teoria literária, pela filologia e por outros misteriosos encargos da inteligência, nas dependências da moradia não faltavam livros em papel e os que começavam a chegar em meio digital.
Os progressos no domínio das letras, da sílabas e dos codigozinhos marotos da aprendizagem, foram surgindo diante da mestra e das reações que a aprendiz não escondia diante de tantas descobertas, até mesmo nos exercicios de caligrafia. Desse trabalho cúmplice nasceria um livro que, a nenhuma criatura alfabetizada, deveria escapar de uma leitura atenta.
Conquistados os instrumentos da leitura, surge logo um problema. A sua utilidade. Como extrair daquele conjunção de códigos e de tanto aletramento benefícios em causa e benefício próprios?
Os índices de leitura, vamos e venhamos, são muito baixos no Brasil. No mais das vezes, no sertão distante, símbolo de todas as necessidades civilizatórias, a alfabetização foi um valioso instrumento politico-eleitoral. Serviu, também, para aprender a assinar o nome e tirar o título de eleitor…
Mais adiante, para alguns afortunados, a leitura levaria a novas descobertas. Além de assinar o nome, a dádiva de poder ler um velho mecanismo dentre os incunábulos impressos — o livro. O que ler, como chegar às fontes genuínas da leitura?
Uma aluna disse-me certa feita que um seu tio, religioso, homem de fé e robustas atitudes, a aconselhava a fazer escolhas adequadas para as suas leituras de fruição, já que do resto ocupavam-se as bibliografias dos assentamentos celebrados na Academia. Recomendava à jovem sobrinha evitar as “bolhas de sabão”, frágeis no texto e comezinhas nas ideias…
Minha iniciação como leitor, devo-a a meu avô, advogado dotado de uma cativante formação intelectual. Com ele fiz as primeiras descobertas, com a abertura oportuna das porteiras da percepção. Deu-me ele as alavancas para trabalhar o terreno e não me cobrou resultados. Esperou que o interesse brotasse no coração do neto e que o enchesse de procuras, seguindo apenas o instinto de caçador de revelações renovadas.
Vivi, a exemplo de Bárbara Freitag, as emoções do meu próprio aprendizado, inquieto, ansioso para alcançar as leituras “avançadas”.
Descobri com Barthes que no mundo moderno, em lugar do autor, surge a figura do “scriptor”, cujo poder “é combinar textos preexistentes em novas formas”. Não admira que ao leitor sejam reconhecidas novas habilidades. O leitor, como o escritor não tem passado, ambos, conforme Barthes, nascem com o texto e a leitura.
“Salambô”, de Flaubert, veio às minhas mãos, graças a um proveitoso descuido do avô que o reservara para minhas leituras futuras, aguardadas. Multipliquei minhas buscas atrevidas e pouco “apropriadas” para a idade. Com o aprendizado do francês, dei-me uma segunda voz e linguagem. Poupei-me, por esforço próprio, da condição de monoglota que, por aqueles tempos, malsinava as vocações intelectuais dos jovens.
A leitura segue por um trilha bifurcada, distante dos tipos móveis dos incunábulos gutenberguianos. De um lado o universo analógico com cheiro de guardado dos “scriptorium” renascentistas. Do outro, o mundo sem limites do universo digital, no convívio complementar de uma civilização em progresso contínuo, a salvo das incertezas da passagem da oralidade para a escrita, agora, da travessia da palavra para imagem em uma conversão semiótica transformadora.
Referências:
Roland Barthes – “Le Plaîsir du texte”, Seuil, Paris, 1973
Bárbara Freitag – “Diário de uma Alfabetizadora, Papirus Editora, São Paulo, 2009