As esculturas e a língua do povo. Por Angela Barros Leal

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Foto: Eliezer Rodrigues

No dia 17 de abril de 1929, Fortaleza amanheceu com uma surpresa: dos porões do navio Purus, desembarcavam aos 58 mil quilos de blocos de granito branco de Itaquera, destinados à montagem da estátua de José de Alencar, a ser erguida na Praça Marquês de Herval.

À frente dos trabalhos de criação e entrega da obra estava o jornalista Gilberto Câmara, presidente da jovem Associação Cearense de Impresa, comemorando 4 anos de existência. O artista responsável era o escultor paulista Humberto Cozzo, vencedor do concurso proposto por Gilberto, em 1928, na Capital Federal, com o objetivo de celebrar os 100 anos do romancista cearense, a acontecer no dia 1º de maio do ano seguinte.

No Memorial da obra, Cozzo explica sua opção pela representação do escritor sentado, uma pena esbelta entre os dedos da mão direita, braços apoiados em dois blocos do alvíssimo granito, em posição adequada a “um homem que interrompe suas anotações para concentrar seu pensamento numa visão que só ele vê ao longe”. 

Para a vestimenta, rejeitara “a preocupação de muitos artistas em vestir [as estátuas] ora com uma casaca de rigor, ou mesmo com um paletó agarrado ao corpo, calças passadinhas, etc. etc.”. Envolvera a figura do escritor “numa capa ou manta, tornando-a mais artística e desprezando, destarte, as modas passadas, presentes e futuras”.

Cozzo não conhecia o espírito crítico do cearense, nem entenderia a vocação local para se autodepreciar, ou para condenar o próximo ao fogo dos infernos. Tão logo ficara exposta, na parte posterior da estátua, o baixo relevo representando Peri a salvar sua amada Ceci; tão logo passara a ser vista, na dianteira, a cena do nascimento de Moacir, o primeiro cearense; tão logo Alencar fora erguido, 6 metros e meio acima da base de granito; tão logo silenciaram os acordes finais do Hino Nacional, executado pela banda de música do 23º BC – dava-se a partida para a destruição do conjunto escultórico.

Foto: Eliezer Rodrigues

Destruição verbal, é bom que se diga. Críticas a torto e a direito, gozação dos jornais, galhofa, pilhérias – o pacote completo das más línguas: o rosto do Alencar não parece com o do Alencar real; o Moacir não está nos conformes; embrulhado num lençol, parece que o escritor está com frio; Alencar travestido de papangu, quem já viu; é a figura de Moisés; e a data de nascimento do escritor, será que era aquela mesma?

A destruição física começaria logo depois. Hoje, quase um século depois da aposição da imagem na praça – que a partir daquele evento, por decreto do prefeito Álvaro Weyne, teria o nome do Marquês substituído pela denominação que tem hoje – a estátua é uma sombra do que um dia foi. O tempo andou mexendo com ela, sim, cantaria Belchior.

O colega jornalista Eliézer Rodrigues vem registrando em texto e fotos, nesse promissor início do ano de 2025, o estado de abandono, as pichações, o dano proposital causado por aplicações indevidas de uma inexplicável tinta cor de rosa, manchando os significativos painéis, bem como sujando as cabeças estilizadas dos felinos de pedra, que adornam as bordas laterais do monumento. 

Isso sem se falar nas desastradas tentativas de restauro, não apenas desse, mas de outros monumentos, dos poucos que possuímos espalhados pela capital. 

Eliézer sofre também com as ofensas à Iracema Guardiã, criação do artista plástico cearense Zenon Barreto. As esculturas de Alencar e Iracema – Criador e Criatura! – fadadas a padecer de males semelhantes. Agravados, no caso da obra de Zenon, por ter Iracema ido ao chão, em uma noite de 2022, não se sabe se por força da Natureza ou se pelo efeito destrutivo de mãos humanas. 

A reposição sobre o pedestal foi veloz, deve-se reconhecer. Entretanto, o arco no qual a indígena cabisbaixa se apoia, à espera de seu amor, ganhou curvatura bem diversa da proposta original, como comprovam fotografias feitas pelo incansável Eliézer.

Foto: Eliezer Rodrigues

Menos mal, digo eu. Pelo menos, Iracema não foi banhada dos pés à cabeça em tinta supostamente da cor de ouro, afronta imposta a José de Alencar. Em algum momento, em algum dos restauros, por motivos não esclarecidos, perdeu ele a brancura com que surgira da mente e das mãos do escultor, passando a reluzir, na praça, tão amarelo quanto uma moeda falsa.

Enquanto a maioria de nós se cala, nesse mundo de tanta coisa com que se preocupar, fico pensando no que comentaria, sobre tais assuntos, a afiada língua do nosso povo nos idos de 1929!

Angela Barros Leal é jornalista, escritora e colaboradora do Focus Poder 

 

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