“Ah! Que bel vivere, que bel piacere
Per un barbiere di qualità…”
Il barbiere di Seviglia, Rossini/Beaumarchais
Dada a circunstância de o primeiro dos Elpidio da família ter sido barbeiro, em Maranguape, seguro a saga dos “figaros” com muita ternura.
O avô, órfão muito cedo, no Crato, após circular pelas casas de tios próximos e parentes afins, deu com o pé na estrada e de tudo fez um pouco, finalmente casar-se com uma Limaverde, Oda, filha de uma grande família, de Hermelinda Freire e Honório do Monte Lima, para os lados do Iguatu. Quixadá foi a paragem seguinte, antes de desembarcarem em Maranguape e Fortaleza, destinação final de muitos desvios a que a vida os obrigou. Em Maranguape, teriam quatro filhos e as dores da perda dos dois mais velhos.
Essas histórias compõem as narrativas de memória postas em livro inédito, “O Barbeiro que lia Voltaire”, de cujos originais não me aparto, em busca de pedaços de realidade perdidos na prosa de muitos laços familiares expostos e árduos cometimentos silenciados.
O assunto deste breve registro são os barbeiros de cujo convívio arranquei muitas histórias, algumas esquecidas, outras, vivas, bem vivas, a mexerem sentimentos aprisionados, guardados, por discrição e timidez.
Tive-os, muitos desses oficiais de bom ofício, além do avô, a aparar a crina dos netos, em alarde de festa ruidosa, quando vinham à Fortaleza, de férias; do Rio de Janeiro. Fui cliente disciplinado em Brasília, Paris e Colônia.
Não pode haver entidade mais distinta, uns dos outros, do que barbeiros, “cabeleireiros”, distinção que lhes veio com a freguesia requintada dos novos tempos. Têm os seus caprichos, as suas idiossincrasias e o orgulho profissional da demonstração de maestria na tesoura e das habilidades nas navalhas.
Um desses artesãos-artífices em Colônia, fazia-me o cabelo a navalha, e cobrava-me em euros. Como não falávamos uma língua comum, livrei-me da “conversa de barbeiro”, para alguns comparáveis a papo de motorista de táxi. Interrogativo e pouco explícito. Novidadeiro.
Não é o meu caso, todavia; sempre tive curiosidade espontânea pelo diálogo das barbearias. Os “barbier” germânicos não seriam exceção. Tampouco os taxistas…
No tempo da minha adolescencia transgressora, a revolta contra o “status quo” e os sinais de dissidência em relação à autoridade familiar não chegara, ainda, aos cabelos. Woodstock estava longe de acontecer, as namoradas eram virgens convictas e resistentes, as mulheres gostavam dos homens e os homens, das mulheres. Tempos bons, aqueles.
Íamos pouco à barbearia, a não ser arrastados pelos pais. Éramos, os da minha idade, todos, muito “quadrados”… Vieram as costeletas, os bigodes armados das primeiras penugens, aquela vontade de ser adulto, sem, entretanto, deixar crescer as melenas afirmativas e “woke” destes dias de ideias muito confusas, porém convincentes.
O símbolo da contestação e do espírito insurrecional, contra tudo ou quase tudo, veio tornar-se padrão estético-radicalizante mais recentemente, pelos anos 50/60 do século passado. Os cabelos eriçados, hirtos, em desalinho revolucionário, acompanharam estranhas armaduras de couro, inofensivas, admitamos, e um linguajar tomado de códigos ininteligíveis. Foi o “Adeus às barbearias” e a aposentadoria das tesouras e das máquinas de tosquiar o envolucro de juízos vazios — aquele receptáculo a que os anatomistas chamam de “cérebro”.
Einstein, inteligência de frondosas madeixas, mexia com os códigos de Deus e estirava a língua no seu consulado na Califórnia…
Por aqui, a meninada insurrecta fazia o que podia para esconder as ideias guardadas atrás da caixinha do juízo.
Escapei por pouco dessa mobilização de uma geração.
Percebo, agora, sem remissão de arrependimento, o quanto fui “quadrado” diante de tantos desafios ignorados. Era aluno de colégio de inspiração presbiteriana e, logo depois, de uma escola de cadetes do exército. Álgebra, geometria, trigonometria e atividades correlatas, e cabelo a “príncipe de Gales” eram o padrão de correção vigente.
Levaria tempo para que me libertasse desses regramentos. Ainda assim, continuei a cortar os cabelos “rente”, dominado pelo temor de transformar-me em um “sem cabelos”, calvo, careca…e sem a garantia de virilidade atribuída aos calvos pelos caprichos da genética.
Dei-me a pensar em compor uma “Conversa de Barbearia”, em prosa, espécie de “Barbeiro de Sevilha”, para usuários, com o propósito de resgatar a “ambiência” dos salões e da saga poderosa de respeitáveis artesãos e de suas infindáveis reflexões.
Mota, o meu barbeiro, é personagem e ator, depoente e ouvinte complacente das nossas intermináveis conversas e juízos inteligentes.