Por que tantos adultos parecem recuar ao território da infância? O sucesso de fenômenos como bonecos reborn, livros de colorir para adultos, o culto à juventude eterna e a recusa em aceitar as marcas do tempo não são apenas modismos inofensivos. Esses comportamentos revelam um traço cada vez mais evidente da subjetividade contemporânea: a dificuldade em amadurecer.
A hipótese? Vivemos não apenas em uma sociedade do cansaço, como descreve Byung-Chul Han, mas também em uma sociedade da infantilização funcional — onde o crescimento psíquico é evitado em nome do conforto, da estética e da fuga da dor.
O fenômeno dos bebês reborn, colecionados e cuidados por adultos como se fossem reais, vai além da excentricidade. Seria a expressão de um desejo de retorno à dependência original, onde não há exigência de autonomia nem enfrentamento da realidade adulta?
Como aponta Erich Fromm em O Medo à Liberdade, quando a autonomia se torna insuportável, muitos se voltam a figuras substitutas de autoridade e cuidado. O bebê não exige reciprocidade emocional — apenas uma entrega simbólica. Cuida-se do boneco para, no fundo, ser cuidado por ele.
Em abril, os três livros mais vendidos no Brasil eram livros de colorir para adultos. Nada contra colorir — mas apenas eles? Repetir padrões, preencher espaços pré-definidos, relaxar sem se arriscar. Os livros de colorir talvez representem o desejo por um prazer sem frustração, uma atividade que simula criação sem exigir elaboração simbólica.
Michel Foucault, ao descrever os mecanismos sutis de disciplina, nos ajuda a compreender esse comportamento como parte de um sistema que estimula uma produtividade domesticada. O sujeito sente-se artista, mas permanece tutelado. Para Lipovetsky, trata-se de um hedonismo leve: estético, mas vazio.
Também podemos perceber, nesse mesmo movimento, uma recusa ao envelhecimento — não apenas como vaidade estética, mas como negação das implicações físicas do tempo. O corpo, antes expressão de história e sabedoria, passa a ser silenciado, medicalizado, reconfigurado para parecer “invisível ao tempo”. É a tentativa de apagar o limite.
Byung-Chul Han argumenta que a sociedade contemporânea evita o negativo: velhice, luto, dor. Dardot e Laval complementam ao mostrar que o sujeito neoliberal só é valorizado enquanto performa — e envelhecer é, simbolicamente, performar menos. Negar o tempo torna-se, então, uma tentativa de escapar da exclusão social e econômica.
Vivemos um verdadeiro espetáculo de dependência e tutela. Uma sociedade que oferece colo demais, e não preenche.
Kant, em seu célebre ensaio O Que É o Iluminismo?, define “menoridade” como a incapacidade de usar o próprio entendimento — e frisa: trata-se de uma escolha. Quando o mundo oferece tutores por todos os lados (algoritmos, médicos, coaches, inteligência artificial), muitos escolhem abrir mão da autonomia. Afinal, ser autônomo exige esforço, discernimento, responsabilidade.
Para Fromm, essa escolha é uma fuga da angústia existencial. Para Foucault, resultado de séculos de adestramento institucional. Para Lasch, o sintoma de uma cultura narcisista que não tolera frustrações. Escolha sua tragédia.
Travessia negada, crescimento adiado. Bonecos, livros de colorir, discursos de “eterna juventude” — todos parecem apontar na mesma direção: a recusa em atravessar a vida como ela é. Preferimos simular, anestesiar, evitar. Não se trata aqui de julgar práticas individuais, mas de compreender o que elas expressam coletivamente. É uma leitura, não uma inquisição.
A vida adulta, com seus silêncios, perdas, limites — e também sua potência criativa — exige coragem. Coragem de fazer a travessia.
Na sociedade da infantilização, tudo nos convida a evitar esse meio. Mas é nele que a subjetividade se forma, amadurece, e se torna capaz de sustentar o mundo — mesmo quando o mundo não oferece sustentação.
